sábado, 2 de novembro de 2024

1492: O BIG BANG DA MODERNIDADE – O DIÁLOGO IMPOSSÍVEL – Maria Angela Coelho Mirault

 1492: O BIG BANG DA MODERNIDADE – O DIÁLOGO IMPOSSÍVEL – Maria Angela Coelho Mirault 

“Os milhões de sepulturas espalhadas pela Europa, resultados da tirania do nazismo; a dizimação dos povos indígenas das Américas e da Austrália, o rastro destrutivo do apartheid, esse crime contra a humanidade - todos esses são como pergunta que flutua ao vento e não para de nos assombrar: por que deixamos que tudo isso acontecesse?” (Nelson Mandela - Presidente da África do Sul - discurso proferido para as Duas Câmaras do Parlamento do Reino Unido, em sessão conjunta, em 11/7/96. 


 INTRODUÇÃO 

Conduzidos a condição de povos periféricos, fomos levados a acreditar na história contada e registrada sob a perspectiva do vencedor-colonizador e, com isso, aprendemos a subsumir e glorificar seus heróis, cujos atos de heroísmo nos tornaram sujeitos de sua opressão e nos levaram a ser como somos hoje. O jornalista uruguaio Eduardo GALEANO afirma em sua obra “As Veias Abertas da América Latina”1 que a “América Latina especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar e fincaram os dentes em sua garganta”. Segundo ele, mesmo após terem se passado séculos, continuamos aperfeiçoando-nos em nossas funções: 

“É a América Latina, a região das veias abertas. Desde o descobrimento até nossos dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e como tal tem-se acumulado e se acumula até hoje nos distantes centros de poder”. 

Com seu estilo contundente, logo nas primeiras páginas do seu livro-reportagem, o autor denuncia: “São secretas as matanças da miséria na América Latina; em cada ano explodem, silenciosamente, sem qualquer estrépito, três bombas de Hiroxima sobre estes povos, que têm o costume de sofrer com os dentes cerrados.” 

Enrique Dussel é, como alguns de nós, descendente e “filho” de Malinche - mulher índia presenteada a Cortês. Como latino-americano, traz nas veias essa mistura ambígüa do sangue do colonizador e do colonizado; do estuprador e da estuprada. É argentino, doutor em filosofia pela Universidade de Madrid, doutor em 1 GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. 34. ed. São Paulo : Paz e Terra, 1992. 97 2 DUSSEL, Enrique. 1492 - O Encobrimento do Outro. Rio de Janeiro : Vozes, 1992. história pela Sorbone de Paris e se propõe a estabelecer uma Filosofia da Libertação para a América Latina, onde haveria a possibilidade de se assegurar um espaço comunicativo para a argumentação das divergên cias. O referido autor é, antes de tudo, um pensador que concebe uma história latino-americana, contada pela perspectiva do “Outro” e aponta o Mito da Modernidade como responsável pelo encobrimento das raízes e do passado comum de nossos povos. É sob o pensamento de Dussel2 e ainda valendo-me de algumas contribuições retiradas das teses de Prigogine, que procurarei desenvolver o presente trabalho. ISSO AQUI NÃO ERA UMA TERRA DE NINGUÉM, UM TERRITÓRIO VAZIO E SEM HISTÓRIA Quando os “abençoados” fi lhos de Castela surgiram mágica e inexplicavelmente das águas oceânicas, recepcionados como deuses, pisaram nossas areias e “descobriram” nossas terras, isto aqui não era simplesmente uma terra de ninguém a ser invadida e ocupada. Muito menos um mundo absolutamente selvagem, sem cultura e sem história. Tínhamos um passado de culturas singulares espalhadas por todo o imenso território americano. Todos os autores que se dedicam a arqueologia das culturas e da história assinalam que o berço da civilização origina-se de quatro áreas distintas: uma, do Egito e as três outras, da Ásia. Reconhecem ainda que, num passado muito remoto, em certos lugares propícios e em momentos adequados, surgiram, pelo menos, seis sistemas civilizatórios de confederações urbanas, identifi cadas por grandes 98 civilizações, supondo que houvesse zonas de contato entre elas através do estreito de Bhering. Os primeiros habitantes deste continente vieram da Ásia há cerca de 20 mil anos e quando Colombo, que se imaginava nas Índias, aqui desembarcou, esses habitantes com suas culturas e história espalhavam-se do extremo norte da atual América do Norte ao extremo sul da América do Sul. Se não se pode mais admitir que o Continente Americano tenha sua história contada a partir do ano de 1492, pode-se contudo afi rmar que a origem etnológica de sua população, hoje mestiça, é lhes dada pelos povos aqui encontrados e que receberam como fruto do equívoco de Colombo - já que havia imaginado ter chegado às Índias - a designação genérica de índios. Especifi camente, no que nos diz respeito, nós, latino-americanos, descendentes mestiço e híbrido do confronto dessas culturas com o europeu, temos, em 1492, uma data da violação, um “pai” e uma “mãe”. A INVASÃO DO “LEBENSWELT” Quando os modernos aqui chegaram, vindos das águas do mar e recebido como deuses, encontraram um vasto mundo cultural que ocupava todo o continente, que já havia descoberto rios, montanhas, vales, pradarias, já lhes designara “nomes”, os quais já haviam incorporado ao seu “mundo vida” (Lebenswelt). “Isto não era um ‘vazio’ incivilizado e bárbaro: era um mundo ‘pleno’ de humanização, história, sentido”, segundo DUSSEL. Nossos ancestrais já haviam feito previsões e esperavam o raiar do Sexto Sol, assinalando com isso o momento de dor, de morte e o fi m de um tempo. Se o Eu saqueador de nossas terras não fora aguardado com armas, já o era pelo imagi- 99 3 DUSSEL, p 58. nário e pela resignação, já que “estava escrito” e teria de ser assim. Sequer trouxeram, os europeus, algo que não soubéssemos. Pela cosmovisão da cultura nativa, a invasão do Continente assinalava o fi m de um tempo e não o seu início. Momento de bifurcação na fl echa do tempo, como diria PRIGOGINE. Naquele momento, neste território recém-descoberto havia sim uma fl echa do tempo preexistente, na qual “o processo civilizatório modernizante” signifi ca apenas um marco divisor entre o “tudo” que existia e o “nada” que virá depois, já que a ação “encobridora e emancipatória” ainda estava por se fazer. A COLONIZAÇÃO DO OUTRO Com os espanhóis e posteriormente com os portugueses, foi imposta uma nova ordem: o ocultamento e a negação absoluta do Lebenswelt nativo e encontrado, a ponto de não sabermos, nem mesmo hoje, distinguir quem foram nossos legítimos heróis, nossos verdadeiros opressores e, principalmente, quem somos nós, os oprimidos. Com a explosão entrópica culminada pela invasão européia, perdemos, juntamente com o passado, nossas origens e também nosso destino. Subsumimos uma ascendência européia, repudiamos nossa origem latina: asteca, guarani, maia ou inca. Assumimos uma paternidade européia, renegamos nossa maternidade índia. Concebemo-nos, hoje, mais crioulos, fi lhos de Cortês com sua mulher espanhola, do que mestiços, fi lhos de Malinche, sua escrava, amante, índia violentada. Essa perspectiva que temos do Eu Conquistador-violentador vem afi rmar-se na constatação de GALEANO3 : 100 “Quatrocentos e vinte anos depois da Bula do Papa Paulo II, em setembro de 1957, a Corte Suprema de Justiça do Paraguai emitiu uma circular comunicando a todos os juízes do país que ‘os índios são tão seres humanos como os outros habitantes da república...’. E o Centro de Estudos Antropológicos da Universidade Católica de Assunção realizou posteriormente uma pesquisa de opinião pública na capital e no interior: de cada dez paraguaios, oito crêem que ‘os índios são como animais’ (...)”. Todavia, quase todos os paraguaios têm sangue indígena, e o Paraguai não se cansa de compor canções, poemas e discursos em homenagem a “alma guarani” (GALEANO, 1976 : 53). Essa submissão a esse Eu violentador é ainda sustentada pelo mesmo autor, quando nos relata que: “Até a revolução de 1952, que devolveu aos índios bolivianos o esquecido direito `a dignidade, os pongos -índios dedicados aos serviços domésticos- comiam sobras da comida dos cachorros, com quem dormiam lado a lado, e se curvavam para dirigir a palavra a qualquer pessoa de pele branca”. As descendentes índias peruanas, que habitam os Andes, ainda se vestem com roupas “típicas” impostas pelo rei europeu. Não foi por outra razão que Simão Bolívar já havia sentenciado nosso futuro: “Nunca seremos afortunados, nunca!”. 101 4 DUSSEL, p. 51. OS INVASORES CUMPRIAM UMA MISSÃO Fernando Cortês começou a conquista do México pela cidade de Tenchtitlan, capital do império asteca. Dussel4 resgatou este momento revelando que antes de chegar ao México, em Tabasco, os caciques maias oferecem-lhe luxuosos presentes, “no fi nal do mês de março de 1519”. O espanhol recebeu, dentre as oferendas, “vinte mulheres, entre elas uma muito excelente mulher, que se chamou dona Mariana”- a Malinche, símbolo da mulher americana, índia, culta, conhecedora da língua maia e asteca, e que teve “um fi lho do seu amo e senhor Cortês”. Sem considerar as controvérsias a respeito das intenções de Castela no longínqüo século XV, quando Espanha e Portugal lançavam-se às conquistas das terras descobertas do Novo Mundo, vale ressaltar, agora pela visão “descoberta”, que aqueles aventureiros cumpriam, mais do que nunca -sem que disso tivessem qualquer indícios- as determinações de um tempo previsto pela cosmologia dos antigos e cultos povos que aqui habitavam. Enquanto que, para aqueles e sob a perspectiva emancipada do Mito da Modernidade, em 1492, teve início um novo tempo, para estes, 1492 signifi cará o término de muitas eras; ou seja, “o fi m do mundo” e o começo do tempo de resignação de muitos, antes anunciado pelos deuses. De países antes considerados periféricos, ao invadirem o continente americano e ao descobrirem e dominarem o Outro, a Europa adquiriu sua condição eurocêntrica no mundo. Segundo Enrique DUSSEL, o ano de 1492 signifi ca na História Ocidental, o nascimento da Modernidade e a origem do seu “Mito”, o mito da modernidade! Segundo ele, esse episódio não pode signifi car o encontro de culturas, porque o Outro -que somos nós- jamais foi considerado em sua diversidade, com peculiaridades e cosmovisões tão particularmente 102 antagônicas do Eu descobridor. Dessa forma, aceitar a premissa de que fomos descobertos, e a partir daí aconteceu o encontro de raças e culturas, é aceitar a manutenção da construção de um mito, denuncia ele. O que teve início naquele longínqüo 1492 foi um “choque” genoci da e absolutamente destruidor do mundo indígena. A par das atrocidades cometidas nas batalhas de conquista territorial, GALEANO (1976 : 53) registrou que: “As bactérias e os vírus foram os aliados mais efi cazes. Os europeus traziam consigo, como pragas bíblicas, a varíola e o tétano, várias doenças pulmonares, intestinais e venéreas, o tracoma, o tifo, a lepra, a febre amarela, as cáries que apodreciam as bocas. (...) Os índios morriam como moscas; seus organismos não opunham defesas contra doenças novas. E os que sobreviviam fi cavam debilitados e inúteis. O antropólogo Darcy Ribeiro calcula que mais da metade da população aborígene da América, Austrália e ilhas oceânicas morreu logo no primeiro contato com os homens brancos”. Do choque e da violência do confronto com a cultura Renascentista nasceu uma nova cultura híbrida e sincrética, cujo resultado fará surgir o sujeito de uma certa raça mestiça, resultado de uma dominação absolutamente genocida, do “eu” europeu sobre o “mundo do Outro” -do índio- imposta e mais tarde encoberta pelo Mundo Moderno com todas as suas concepções político-econômica e fi losófi ca. Desde esse momento, estabeleceu-se, então, uma relação desigual, de negação da Alteridade, exclusão e aniquilamento de um povo e a conseqüente afi rmação de uma superioridade fundamentada em cosmovisão distinta e com base na teologia católica-cristã. O mundo-vida preexistente não fora aceito como fato, fora não apenas desconsiderado como totalmente desprezado, pela 103 5 PRIGOGINE, Ilya. O fi m das certezas. São Paulo : Unesp, 1996. racionalidade-cristã-renascentista sobre as religiões, crenças e mitos dos povos ameríndios, elementos constitutivos basilares de toda uma cultura milenar em plena punjança naquele momento. 1492: A SINGULARIDADE DO “BIG BANG” Recentes investigações atribuem ao México pré-colombiano uma população oscilante entre 30 e 37,5 milhões de habitantes. Desse modo, quando os espanhóis pisaram pela primeira vez nas praias das Bahamas, punham seus pés num continente habitado e constituído por diversas civilizações. Para que se possa acompanhar, e talvez ilustrar, as concepções de Dussel, cabe elaborar uma tentativa de aproximação analógica com a concepção que Prigogine estabelece sobre o nascimento do tempo e as teorias entrópicas da física moderna. PRIGOGINE5 propõe que o tempo absoluto precede a existência e que os fenômenos entrópicos podem signifi car um acontecimento na fl echa do tempo e assinalar tanto o fi m de um momento quanto o início de outro, ou seja, uma auto-organização do próprio momento do caos. Para ele, esse momento de choque - e aqui analogicamente propomos entre o descobrimento da América em relação ao Big Bang da criação do universo- entre um passado seguido de um presente pode assinalar o instante de uma bifurcação na fl echa preexistente do tempo. Isso pode nos fazer supor que 1492 pode ter assinalado o surgimento de inúmeras outras possibilidades de novos e sucessivos acontecimentos. Pode ser também que, sob essa hipótese, a presença aliciadora da cultura européia e nossa submissão, assinale a opção que fi zemos 104 ao seguir um “caminho de bifurcações sucessivas”, que, por sua vez, ao gerarem outras bifurcações e escolhas foram nos conduzindo ao que somos hoje. Prigogine particulariza e relativiza ainda uma analogia com sua teoria entre o acontecimento na fl echa do tempo universal com relação a nossa própria vida. Cito PRIGOGINE e sua teoria “para ressaltar que nada do que aqui se realizou em nome do mito da Modernidade pode ter uma justifi cativa emancipadora, histórica ou mesmo ontológica. O Eu Modernizante apresentara-se aos “incultos” e “incivilizados” habitantes do Novo Mundo muito mais bárbaros do que eles. Com suas caravelas, armas e soldados, considerando-se aquinhoados por uma tecnologia e uma cultura superior, pretensamente culta e cristã, vinham e atuavam em nome de Cristo, abençoados pelos reis católicos e pelo sumo pontífi ce, para trazer a civilização e a razão expressa em atrocidades. O que os europeus não sabiam, no entanto, é que, pelo imaginário trágico dos povos ameríndios, cumpriam eles, além de sua missão, um destino antes pressentido da chegada de um novo mundo, já por eles esperado e revelado por seus deuses. A RAZÃO EMANCIPADORA DO EU-EUROPEU Para o mito da Modernidade, 1492 deu início à história de uma América Nova, descoberta, virgem, disponível, rica, pronta para ser saqueada e... evangelizada. Para a Modernidade, todo o esplendor histórico da cultura indígena não merecerá qualquer leitura cultural ou terá qualquer signifi cado histórico. Afi nal, para o Espírito Emancipador, os fi ns sempre justifi carão os meios. O holocausto indígena 105 6 DUSSEL, p. 52. vai ter justifi cativa na Ilustração modernizante: “a colonização do Lebenswelt do índio, do escravo africano pouco depois, foi o primeiro processo europeu de modernização, de civilização, de subsumir (ou alienar) o Outro como a si -mesmo. (...) O mundo da vida cotidiana conquistadora - européia ‘colonizará’ o mundo da vida do índio, da índia, da América”, afi rmou DUSSEL (50-1). O mito da Modernidade tem como característica básica a sutileza de vitimar o inocente, inculcando-lhe a culpa por sua própria vitimação. Atribui ao “sujeito moderno” plena inocência pelos atos bestiais que pratica, em nome da modernização, razão e justifi cação argumentativa. Um mero custo necessário; a consecução dos objetivos por uma causa justa: o progresso dos incivilizados em nome de uma evangelização cristã e, logicamente, a causa do capital. Através de argumentos emancipatórios, depois permite ao próprio bárbaro que supere sua “imaturidade”. Admitida a superioridade da cultura européia, o fato de conduzirem as outras culturas à emanci pação do barbarismo, constituir-se-á num bem-estar para as próprias culturas que, emancipadas, tornar-se-ão as mais diretas benefi ciadas pela salvação, mesmo que esse fi m seja alcançado pelo sacrifício extremo. O holocausto e encobrimento cultural serão as moedas com que esses povos pagarão pela emancipação de uma imaturidade culpável. A sangria do Novo Mundo convertia-se num ato de caridade ou uma razão de fé. Junto com a culpa nascia, segundo DUSSEL6 , um sistema de álibis para as consciências culpáveis. O vice-rei do México, por exemplo, considerava que não havia melhor remédio que o trabalho nas minas para se curar “a maldade natural” dos indígenas. O referido autor registra em sua obra que, Juan Ginés de Sepúlveda, o humanista, sustentava que os índios mereciam o trato que recebiam porque seus pecados e idolatrias constituíam uma ofensa a Deus. O conde de Buffon afi rmava que não se registravam, nos índios, animais frígidos e débeis, “nenhuma atividade da alma”. O abade 106 De Paw inventava uma América que os índios degenerados eram como cachorros que não sabiam latir, vacas incomestíveis e camelos impotentes. A América de Voltaire, habitada por índios preguiçosos e estúpidos, tinha porcos com umbigos nas costas e leões carecas e covardes. Bacon, De Maistre, Montesquieu, Hume e Bodin negaram- -se a reconhecer como semelhantes os “homens degradados” no Novo Mundo. Hegel falou da impotência física e espiritual da América e disse que “os índios tinham perecido ao sopro da Europa”. No século XVII, o padre Gregório Garcia sustentava que os índios eram de ascendência judaica, porque, como judeus, “são preguiçosos, não crêem nos milagres de Jesus Cristo e não são gratos aos espanhóis por todo o bem que lhes fi zeram”. O padre Bartolomeu de Las Casas dedicou sua fervorosa vida à defesa do índio. Dizia que os índios “preferiam ir ao inferno para não se encontrarem com os cristãos”, registrou ainda DUSSEL (53). O DIÁLOGO IMPOSSÍVEL DUSSEL apontou que para que os arautos da Modernidade pudessem compreender o mundo vida dos “incivilizados”, antes teriam que dominar e conhecer todo o código lingüístico e cultural daqueles “selvagens”. Para com eles participar de uma ação comunicativa de fato e com eles dialogar, precisaria conhecer o seu mundo, sua cultura, seus mitos, seus deuses, suas crenças, sua organização so cial, precisariam colocar-se no lugar do Outro, antes de se lançarem a tarefa de encobri-lo, compelindo-o a subsumirem uma cultura que lhes era totalmente alheia ao seu mundo-vida. 107 A COSMOVISÃO DE MONTEZUMA: UMA ALIADA INVENCÍVEL DE CORTÊS Alguns autores registram que a capital asteca Tenochititlán tinha mais de 300 mil habitantes, outros afi rmaram que contava com apenas 100 mil. O que importa é que, quando desembarcou na cidade: “Fernão Cortês era acompanhado por não mais de 100 marinheiros e 508 soldados; trazia 16 cavalos, 32 bestas, 10 canhões de bronze e alguns arcabuzes, mosqueteiros e pistolas. Apesar do contraste numérico das forças em oposição, bastou-lhe isto para conquistar o povo mexicano. E entretanto a capital dos astecas era cinco vezes maior do que Madri e tinha o dobro da população de Sevilha, a maior das cidades espanholas” (GALEANO, 1976 : 28). Mas, como foi possível, então, a Montezuma ter-se deixado enganar pela fi gura e a força de Fernando Cortês? Ao discorrer sobre as possibilidades que fi zeram com que o imperador asteca e todos os seus guerreiros e deuses tivessem se enganado, sendo vencido pelo invasor espanhol, DUSSEL considerou ser primeiramente necessário observar que Moctezuma era um “tlamatini”, que fora educado como todos os outros tlamatini no Calmécac, uma escola de sábios. O fruto desse ensino era conhecer “a sabedoria já sabida”, para com ela poder articular uma “palavra adequada”. Com uma disciplina retórica (como na Academia ou no Liceu), articulada na obra maior do Calmécac: a “fl or do canto”. “(...) aquele era o ‘lugar’ por excelência da comunicação do ‘terrestre’ com o divino, (...)” (DUSSEL, p. 121). DUSSEL propôs no seu relato que entre os astecas havia uma tensão a qual prefere chamar de “mito sacrifi cial”, que vai depois proprocionar a submissão ao Mito da Modernidade, pela aceitação. 108 Para o referido autor, compreender a função que tal tensão vai ocasionar em Moctezuma, constitui-se como ponto fundamental para que se possa entender e até mesmo tentar explicar as exitações do imperador frente a Cortês - que, na verdade demonstrou ter agido mais como um tlamatini, ou seja, um sábio, do que como um militar quando da inexplicável e aparente amigável chegada de Cortês. Os astecas cultuavam quatro deuses. O preferido deles era Hutzilopochtli, deus da guerra e do sol, que lhes exigia sacrifícios humanos diários para que o Sol pudesse nascer todas as manhãs. Eram ainda antropófagos e muitas vezes se alimentavam das entranhas dos humanos sacrifi cados. Outros dos seus deuses eram Tloloc - da chuva, Tezcatlipoca - do vento e Quetzalcóalt - do conhecimento e do sacerdócio. Para a crença dos astecas, este último atravessara o mar -impossível de ser navegado a não ser por um deus- e um dia voltaria. Os astecas, assim como os fi lósofos tlamatinis, acreditavam na determinação do futuro na “velha regra da vida”. Tinham um conhecimento exato da mediação do tempo sagrado. Cada dia tinha uma divindade, cada semana, cada mês. E era preciso lhes prestar culto (canto, ritos, sacrifícios), para fazer-lhes felizes e acalmar seus possíveis malefícios. Daí, a justifi cativa de suas festas e celebrações religiosas. Tinham uma consciência trágica e determinista da vida e dos acontecimentos. Para sua crença, já haviam se passado cinco épocas, cada qual dominada por um dos quatro fi lhos gerados pelo deus-deusa, ou “divina dualidade”, dispostos nos quatro cantos cardeais. A idade agora era a do deus guerreiro dos astecas, na “era do sol em movimento”. Cortês (símbolo e mão da invasão espanhola) vinha do infi nito e das profundezas das águas do Atlântico. Não podendo os astecas, através do seu mundo vida, estabelecerem qualquer explicação para o fato: “Acharam que o invasor era Nosso Senhor Quetzalcóalt que chegara”. E se assim fora, Moctezuma não teria qualquer alternativa senão submeter-se ao que já estava predeterminado. Foi sob o equívoco de Montezuma que Cortês logrou seu primeiro êxito e assim 109 foi recebido pelos astecas como seu próprio deus prometido. É sob essa perspectiva que o espanhol foi recebido pelo imperador: “Senhor nosso, fi caste fatigado, fi caste cansado; já a esta terra chegaste. Chegaste a tua cidade: México. Aqui vieste te sentar em teu sólio, em teu trono. (...) Não, não estou sonhando (...). Há cinco, há dez dias eu estava angustiado: tinha o olhar fi xo na região dos mortos. E tu vieste entre nuvens, entre névoas. Foi isto que nos tinham deixado os reis, os que regeram, os que governaram tua cidade: que havias de te instalar em teu assento, em teu setial... Vem e descansa; tom posse de tuas casas reais; dá refrigério a teu corpo.” Dussel assegurou que a dedução de Moctezuma era perfeitamen te normal se fosse levado em consideração o “mundo” de Moctezuma “e não for projetado sobre ele a perspectiva euro cêntrica”. O impera dor era culto do que de mais signifi cante sua civilização lhe disponibili zava. Era muito mais do que um guerreiro, “era um tlamatini de austera educação moral na melhor tradição dos sábios toltecas”. Para os astecas, “tudo era regulado com antecedência desde a eternidade”, para eles, tudo era “necessário”, sem possibilidades de mudanças imprevisíveis ou acidentais, além do que, ainda concebiam não ser possível se passar lenta e progressivamente de uma para outra época. Essa passagem só poderia ser realizada abruptamente e de forma radical: “uma revolução instantânea e radical do universo” (Dussel, p. 145). O Big Bang ocasionado pela chegada dos espanhóis signifi cou, para os maias, o fi m de uma época (também) esperada em que “havia paz, prosperidade...”. Da mesma forma entre os incas, tão logo os invasores chegaram correu o boato de que o “tempo dos incas terminara”. Imaginemos, agora, a surpresa dos recém-chegados ao se perceberem merecedores de tantas honras, para eles também inexpli- 110 cáveis, já que não tendo o conhecimento da cosmovisão daquele povo não tinham também a dimensão do signifi cado de tal oferta. Não havia, portanto, qualquer possibilidade de entendimento nem argumentações compreensíveis. Taticamente, porém, se “entenderam”. Aos poucos, no contato cotidiano, Moctezuma começou a descobrir quem era esse Outro que lhe invadia os domínios. Através da eliminação das hipóteses que lhe orientavam as ações, Moctezuma chegou racionalmente à sua primeira conclusão: Cortês não é o príncipe Quetzalcóaltl esperado pelos presságios anteriores. Mas, se não era o deus esperado, poderia agir em nome do deus e isso signifi caria “o fi m do Quinto sol”, que era o perigo supremo. A última das hipóteses -a de que fosse simplesmente um invasor humano- tranqüilizava um pouco mais Moctezuma e, por isso, suportava humilhações, na certeza de que “se fossem humanos, apenas sua vida corria perigo, em último caso, mas seria só o seu fi m como monarca e sua cidade de México nada sofreria” (DUSSEL, p. 128). A conclusão de que Cortês e seus acompanhantes eram simples humanos só foi percebida por Montezuma com a vinda de outros iguais a Cortês, acompanhados de numerosos e novos soldados. Cortês, que nada entendera do “mundo argumentativo” do outro, do mundo sumamente desenvolvido de Moctezuma, procurou dele servir-se. Toda a visão de mundo dos tlamatini estava destruída, concluiu DUSSEL. A par da resistência do povo asteca, fi nalmente foram derrotados por Cortês, que passa para a história que subsumi mos, como um dos heróis conquistadores dos povos bárbaros e incultos aqui “encontrados”. A Modernidade, a Racionalidade enfi m se fi zera presente. Emancipara o oprimido e selvagem povo asteca de permanecer vítima dos seus próprios deuses sanguinários, substituindo-os, contudo, por um outro. “Um novo deus (o capital) inaugura um novo ‘mito sacrifi cial’, o ‘mito’ de Tlacaélel deixa lugar ao ‘mito’ não menos sacrifi cial da ‘mão de Deus’ providente que regula harmoniosamente o mercado de Adam Smith (...)”, concluiu DUSSEL. 111 Realiza-se, contudo, o prognosticado e o surgimento do Sexto Sol, que para aquele povo signifi caria o fi m de uma era e início de um outro mundo. Para Prigogine, um acontecimento entrópico na fl echa do tempo, um momento de bifurcação para novas possibilidades. A emancipação é sempre contada pelos vencedores. Os subsumidos não escrevem suas conquistas, pouco a pouco estas são apagadas pelas “verdades” dos vitoriosos. Mas, ainda assim, embora presos às suas crenças, houve resistências. E só depois de verem-se completamente aniquilados, cada povo interpretou seu signifi cado dentro de sua visão de mundo: assim, no império asteca, todos chegaram à trágica conclusão premonitória que sentiram e lhes havia surgido como possibilidade tão logo desembarcaram os estrangeiros em Tenochitlán. Parecia que, ao contrário de seu imperador, os astecas já haviam interpretado essa chegada como sinalização do fi m do mundo. Os europeus também partiam de premissas. Vinham investidos de um dever de conquista, ocupação e imbuídos da “necessidade” de converterem aqueles selvagens às crenças cristãs, custasse o que custasse. O ESPAÇO PARA O DIÁLOGO PARTIA DE PREMISSAS FALSAS A cosmovisão européia tinha também suas peculiaridades. Embora não conhecessem a língua nativa e se comunicassem em castelhano, serviam-se de sua própria língua como instrumento para uma comunicação impossível de se realizar. Antes de se imporem, liam, aos admirados habitantes, as argumentações pelas quais agiam e em nome de quem estavam ali. E dessa forma argumentavam: “A vós rogo e requeiro que entendais bem isto que vos disse, e para entendê-lo e deliberar sobre isso tomais 112 todo o tempo que for justo, reconheçais a Igreja como senhora e superiora do Universo Mundo, e o Sumo Pontífi ce chamado Papa e em seu nome, e a sua Majestade em seu lugar, como superior e senhor e rei das ilhas e terra fi rme... se não o fi zerdes, ou nisso dilação maliciosa puserdes, certifi cai-vos que com a ajuda de Deus irei poderosamente contra vós e vos farei guerra por todas as partes e maneiras que puder... tomarei vossas mulheres e fi lhos e os farei escravos, e como tais os venderei, e tomarei vossos bens e vos farei todos os males e danos que puder”. Esse era o teor do “requerimento”, lido antes de se iniciar alguma batalha contra eles. Obviamente não poderiam compreender tal “argumentação”. Toda sua cosmovisão, seus deuses, seus heróis, seu mundo imaginário eram interpretados como demoníacos e, como tal, deviam ser abandonados, enquanto a cosmovisão européia era apresentada como divina e única, a ser aprendida pela catequese. É fácil compreender que, enquanto para Hegel a história da Europa é a “origem e fi m da História”, para os ameríndios, a presença modernizadora da Europa em suas terras era nada mais do que o “fi m de um mundo” que não acaba no seu fi m, mas continua num outro e de um outro modo, desconhecido, mas aceito com resignação. 113 A TENTATIVA DE ENTENDIMENTO COM A ALTERIDADE O “senso comum” europeu é tomado como parâmetro e critério de racionalidade ou humanidade, sendo os povos vencidos considerados inumanos, bárbaros, ignorantes, “pouco diferentes dos animais”, por isso, “convém ensinar a aprender a ser homens e instruí-los como crianças... É preciso contê-los com a força... e mesmo contra sua vontade, de certo modo, forçá-los para que entrem no Reino dos céus” (DUSSEL, p. 63). O autor registra um único momento de tentativa de argumentação entre o Outro e o “mesmo”. Quando da chegada de doze franciscanos ao México em 1524. Eles deram, segundo Dussel, início imediato à “conquista espiritual” em seu sentido forte. E, assim, pregou-se a um povo arrasado e convencido por sua própria cultura religiosa da necessidade de aceitação do devir, uma nova e inquestionável “doutrina cristã”. O manuscrito dos Colloquios y Doctrina foi um diálogo histórico (p.146): “pela primeira e última vez os poucos tlamatinimes que restavam vivos, puderam argumentar com tempo e respeito diante dos espanhóis cultos, diante dos doze missionários franciscanos recém-chegados. Era um diálogo entre ‘a razão do Outro’ e o ‘discurso da Modernidade’ nascente. Não havia simetria, não era uma ‘comunidade de argumentação’ em situação ideal. (...) Foi na realidade um diálogo em que os índios eram como mudos e os espanhóis como surdos”. Divida em seis partes, argumentam com sua lógica: primeiro, a saudação é feita na condição de “gente ignorante” frente aos “muito estimados senhores”. Após a argumentação, para que se tornem cristãos, contra-argumentam que os deixem morrer já que seus deuses estão mortos e eles não passam de “gente vulgar, perecedou- 114 ros, mortais”. Na terceira parte, prometem “abrir um pouco agora, o segredo, a arca do Senhor, nosso Deus”. Eles, então, passaram a falar de sua cosmovisão, de sua crença e de seus deuses aos espanhóis franciscanos: “Vós dissestes que nossos deuses não eram verdadeiros. Nossa resposta é esta: estamos perturbados, estamos sentidos porque nos falais, porque nossos progenitores (...) não costumavam falar assim”. Falam das coisas em que foram educados por seus antepassados. Depois afi rmam que não podem por suas crenças anteriores ainda acreditar nas verdades que tentam fazer com que eles troquem todo o conhecimento do seu povo -as verdades cristãs. Finalmente, colocam-se submissos aos que venceram, resignados, determinados como diziam suas crenças. A tentativa a que se refere se dá em função de que a argumentação e o diálogo era construído e deveria ser “compreendido”, através de um intérprete, na língua castelhana, que jamais poderia exprimir todo o código cultural e lingüístico dos dominados e subjugados. O único discurso argumentativo entre duas comunidades desiguais fora prontamente interrompido. “Nunca foi levado a sério!” (DUSSEL, p.150). CONCLUSÃO “A esperança de renascimento da dignidade perdida incendeiaria numerosas sublevações indígenas. Em 1781, Túpac Amaru sitiou Cuzco. (...) Este cacique mestiço, descendente direto dos imperadores, encabeçou o movimento messiânico e revolucionário de maior envergadura”. Muitos foram os verdadeiros heróis da nossa história que tentaram contra-argumentar em vão. Túpac Amaru foi um daqueles que tentaram a resistência. Quando de seu assassinato, em 1781, em seu bolso foi encontrado o seguinte: “Pelos clamores que com generali- 115 dade chegaram ao Céu, no nome de Deus todo-poderoso, ordenamos e mandamos que nenhuma das pessoas pague nem obedeça em coisa alguma os ministros europeus intrusos”. Nunca houve um diálogo perfeitamente compreensível. Não havia ninguém que pudesse conhecer as duas culturas em tal nível que realmente exprimisse nelas o que cada um estava falando na verdade. Talvez seja a isso que GALEANO se referiu quando nos afi rmou que somos um povo que nos acostumamos a perder, enquanto o outro acostumou-se a ganhar. Sob a ótica da Emancipação que nos foi imposta, estaremos todos fadados a cumprir nosso destino de submissão, imposto pela Razão eurocêntrica e encobridora do Outro, que somos nós, acrescida da cosmovisão trágica do passado. É por isso que DUSSEL afi rmou que: “O mestiço viverá em seu corpo e sangue a contraditória fi gura da Modernidade (...) pretenderá ser ‘moderno’ como seu pai Cortês (...) mas fracassará sempre ao não recuperar a herança de sua ‘mãe’ Malinche. Sua condição de mestiço exige a afi rmação de dupla origem -ameríndia, periférica e colonial: a vítima, a outra face” da Modernidade; e moderno pelo “ego” que se “assenhoreia” na terra de seu pai Cortês. O espaço comunicativo continua sendo negado a esse continente, não mais pela Europa que há muito deixou seu lugar de Colonizador, mas a determinação de continuar subsumido continua sendo uma característica desse povo que acostumou-se a perder, como afi rma GALEANO. Ainda continuamos mantendo “As Veias Abertas da América Latina”, subsumidos pelo Outro Emancipatório, não mais do ideal cristão, mas do ideário capitalista. Nossos deuses continuam subsumidos e encobertos, nossas crenças violadas e nossa cultura ridicularizada, pelos novos colonizadores, sob as ordens de um mesmo deus - o deus do Capital e da conseqüente globalização. 116 “O racismo é uma chaga que desfi gura a consciência humana. A idéia de que qualquer povo possa ser inferior a qualquer outro, até o ponto que aqueles que se consideram superiores e tratam os outros como subumanos, nega a humanidade até mesmo daqueles que se atribuem o status de deuses”. Nelson Mandela - Presidente da África do Sul - Discurso proferido para as Duas Câmaras do Parlamento do Reino Unido, em sessão conjunta, em 11/7/96. BIBLIOGRAFIA AUXILIAR DUSSEL, Enrique. 1492 - O encobrimento do outro (a origem do mito da modernidade). Rio de Janeiro : Vozes, 1992. GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. 34. ed. São Paulo : Paz e Terra, 1992. PRIGOGINE, Ilya. O fi m das certezas. São Paulo : Unesp, 1996

sexta-feira, 21 de junho de 2024

A vilania e a capatazia

O capataz é aquele que gere a riqueza que não é sua, domina o que não é seu, faz o que o chefe mandar, age pelo que o mandante não age; são suas as mãos sujas que ferem, que roubam, que violentam, que caneteiam, engavetam, em segundo, terceiro, quarto e último escalão. Em troca de míseros trocados de um cargo, de umas poucas moedas qualquer, cujo rendimento vai alçá-lo às filas dos “outbacks”, dos “hondas” e das “rovers”; aos resort luxuosos, ao vinho mais caro, ao whisky mais antigo; às grifes internacionais: aos eventos que certo ministro da 1ª. Corte promove, nessas Capitanias Hereditárias – chamadas Brasil-, em Portugal. 

O capataz é o escalonado que faz e desfaz, em nome do dono; sim, ele tem dono; é fiel em sua empreitada; é empreiteiro de mandados, aceita qualquer negócio, se vende e se prostitui por qualquer trocado; quer apenas se dar bem. Por ser indigno, envilecido, não precisará apresentar currículo para o exercício de sua função, aliás, prescindirá de qualquer formação acadêmica, precisará apenas de sua argúcia, esperteza e sagacidade para escamotear, sabotar com toda sua vil competência, sem qualquer tipo de escrúpulo. Esse exemplar proliferado em todos os lugares: repartições, empresas, igrejas têm tido lugar garantido na esteira de um mercado cuja ganância, competitividade, distinção predominam. Esquece o capataz, que tudo isso, também, o introduz nas entranhas do inferno, o conduz irremissivelmente, às dores cruciais do remorso e do ranger de dentes, ainda, mesmo, aqui, nesse espaço-tempo do agora, nessa vida, até antes dos sete palmos e do caixão de luxo.

A indignidade, a falta de decência, a prática dos mais baixos costumes envilecem o ser humano. Contra essa chaga não há remédio, não há purgativo, não há oração! O acometido nem se enxerga como tal; não se reconhece como pária da sociedade e, muito menos, procura a cura de sua doença moral. No entanto, ser indigno tornou-se item curricular, ainda, imprescindível, no mundo de hoje (já em ruínas). Ainda se imagina ser preciso ter ao lado indivíduos que não se importam em chafurdar na incúria do malfeito, infringir leis e fazer o diabo, em nome e no lugar de quem detém o mando, a propriedade, a riqueza e o poder. Essa é a triste função da capatazia; intermediação entre o opressor e o oprimido; também, conhecida como assessoria, cargo de confiança, gerência, gestão, ficha suja. 

Os capatazes vicejam, perduram e perpassam por governos e partidos; são úteis. Agem como coveiros, cuidadores de porcos - longe dos ambientes de trabalho honesto desses profissionais - porque precisam mexer na lama, cavar o chão, enterrar quem possam, em nome do pseudo-poder de um cargo, em nome de um chefe, objetivando simplesmente a sua sobrevivência, e, até, prosperidade, dependentes de generosas sobras das mesas dos seus donos.  São capatazes, intermediários, nada mais, dependem de si mesmos, de suas vontades de serem o que são. 

Mas, a vida segue, o tempo corre e esses serviçais, sem mesmo se aperceberem, já fenecem, em vida - de dentro de suas câmaras mortuárias ambulantes, do conforto de seus home-theater, nas cadeiras estofadas de seus gabinetes – sob a ilusão da crença de que dominam, mandam e reinam.

Salvem todos aqueles que, tendo passado pela dura prova do convite, negaram-se a esse ofício, preferindo trilhar o caminho da digna, honrada e dura vida dos milhões de comuns mortais, que acordam, lutam e adormecem sem terem prejudicado a uma única alma, sem terem-se apropriado de um único bem que não lhes pertença. Salvem os honrados, os que já conseguem enxergar que estamos vivendo um novo momento histórico-energético no planeta Terra. Nesses tempos – ainda que mórbidos e escandalosos - eles, os capatazes, já começam a ser reconhecidos e identificados. Distinguir-se-ão, não pelas roupas de grife que enfeitam seus cadáveres ambulantes, mas pelo rastro que deixam em seus fracassados caminhos. Haverá o dia em que o poder e a riqueza prescindirão de suas “competências”. Esse momento está chegando, já se pode vislumbrar logo ali, no horizonte que já vem.

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Carta aos Filhos que se divorciam dos pais

 



Recentemente, quase tod(e)s soubemos que, em algum lugar do mundo, uma mãe movera uma ação judicial com intuito de retirar dois filhos adultos (mais de 40 anos) de sua casa. Nesse mundo convulsionado em que vivemos, fatos que expõe a privacidade de uma família - onde, outrora, todas as mazelas aconteciam ocultamente - não mais fenecem em seu analógico ambiente de origem e reverberam incansável, infame e indefinidamente no ambiente digital, pelo (misterioso) mundo dos algoritmos.  Ao rolarmos os dedos em simples ato no celular, não é incomum surpreendermo-nos pela impactante captura dessas nesgas de realidade. Por esse mundo-novo, capturado por uma câmara qualquer, também pudemos testemunhar o abandono de um pai-cadeirante por um de seus filhos, na calçada da casa de outro irmão. Contudo, no mundo analógico das Varas Judiciais de Família, no campo dos Direitos Difusos do Cidadão, se configura a detecção de outro tipo de distorção nesse “comercial-familiar-de-margarina”, validado, extraoficialmente, por ditas e reconhecidas concepções e práticas de pessoas-e-famílias-de-bem, as quais, até cultivam e propagam alguma fé religiosa. A essa distorção é o que designo por “aborto-tardio” e “divórcio dos pais”.

Talvez, sejamos, aquela geração de pais que, sem bússola e inadvertidamente, vivemos – e, pagamos caro por isso - a juventude do século passado. Aqueles que intentaram uma educação moderninha e adocicada da figura materna da mãe-irmã e do pai-amigo na vida dos nossos filhos. Nós, mulheres aguerridas, acreditávamos na busca irrefreada do sucesso profissional e financeiro, conciliado com o sucesso no lar, mesmo que sob o arrasador regime da tríplice jornada de trabalho (quase que, reconhecidamente, escravo). Nossos filhos foram, sim, criados sob o escambo da troca do afeto por muambas compensatórias. Hoje, nossos mesmos filhos quarentões já foram “encaminhados” na vida. Porém, hoje, também, muitos deles não nos querem por perto dos seus feitos e dos seus êxitos. Alguns de nós ainda tentam sobreviver, contrabandeando pingos de afeto, na figura dos netos. Outros, jazem, surpresos, julgados, condenados, sentenciados, e, abandonados nas calçadas da vida.

O “divórcio” afetivo dos filhos em desfavor dos pais está por merecer um rigoroso e digno estudo antropológico-semiótico, de especialistas afins. Ególatras, alienados e ingratos, sequer se deram conta de que a vida que aqueles (maus) pais gestaram lhes ofertou algo inegociável: um lugar no mundo. Um lugar pelo qual, esses pais, por si mesmos, já seriam dignos e detentores de respeito; representantes que são de todos aqueles que lhes antecederam na fileira incontável da ancestralidade dos que vieram, antes, construir-lhes o trilho por onde, hoje, passam.

Bert Hellinger, o codificador da moderna Constelação Familiar sabiamente designa: “ao filho cabe ‘tomar’ aos seus pais. Isso é muito mais do que amar, respeitá-los e honrá-los. Significa, o reconhecimento dos seus lugares inalienáveis de pertencimento na hierarquia da vida. Não cabe ao filho-adulto-mal-educado (e mimadinho) decidir impunemente pelo abandono de todos que, por seus pais, lhes vieram antes, desonrando sua origem, sua cultura e seu sistema familiar, impedindo que o fluxo da vida chegue e se perpetue em seus descendentes. Ser filho adulto implica sobretudo em cumprimento de deveres e obrigações já inscrita no código da vida e já escritas nos códigos e leis judiciais vigentes.

A figura ímpar da mãe e do pai jamais deveria ser vilipendiada pelos ditos e não-ditos de uma filiação opressora que se decide pelo abandono e o divórcio, unilateral, inefavelmente oculta, silenciosa e implacável.  Sobretudo, porque as leis da vida clamam e exigem a restauração, a perpetuação e o cuidado na manutenção desse vínculo inquebrantável, e nada ocasional, entre pais e filhos; e filhos dos filhos e dos filhos dos filhos, ininterruptamente, ao longo do tempo, indefinidamente. Voltemos nossos olhos e sigamos os passos dos nominados e reconhecidos filhos de Abraão e toda ancestralidade bíblica daquele que veio ao mundo difundir a mínima possibilidade da instalação do amor entre  todos nós, filhos e pais ainda em escalada da perfeição.

 

Campo Grande, MS, 10 de novembro de 2023

Maria Angela Coelho Mirault

Professora Doutora em Semiótica pela PUC de São Paulo

Consteladora e terapeuta familiar



segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Eu quero saber

 


Tudo!

Como foi... Porquê... Quem... Como!

Saco(la) cheio de ouvir a palavra "incompetência", “omissão”, “apuração desse, daquele, do outro... do Saci! Estão trocando os significados das palavras que traduzem os fatos de uma realidade captada por drones, câmeras de segurança, de celulares e transmitidos ao vivo por emissoras de tevê – invadindo o sossego de uma singela tarde de domingo-netfix. Aconteceu tudo diante dos nossos olhos e debaixo dos nossos narizes. Nós vimos!

Com o passar do tempo, é bom que se registre, novos fatos, novas conexões, novas imagens, novas palavras, tratativas, novos registro foram configurando e dando compreensão a um quebra-cabeça de milhares de peças. E quanto mais peças encontram seu lugar nessa hedionda configuração, dando mais luz aqui, um pouco mais ali, uma quase totalidade da mídia “nacional” deu início à Operação - do que já vivenciamos em outros momentos nefastos na história do nosso país - de pautar a verdade; alterar códigos; tirar o sofá da sala; instaurar, e, sorrateiramente, produzir e reverberar uma narrativa higienizada. A novilingua, começa a se infiltrar, invadir mentes incautas e dominar os noticiários, interpretando, distorcendo e impondo a forma como veem as imagens captadas aqui e ali pelas câmaras que - fiéis aos acontecimentos - desenharam e retrataram os acontecimentos, que a gente viu (ora, bolas!) e, agora, a gente vê (ainda) mais.

 

O Dia da Infâmia é um dia pra ser dissecado por inteiro, na mesa de autópsia; ser entendido e não ser esquecido por nenhum de nós. As palavras têm significados constituídos ao longo do tempo nos códigos do imaginário comum; ocupam uma semiosfera onde se registra a História da gente; dos povos; do nosso país; do mundo. Termos como invasão, ocupação, usurpação, baderna, crime, incompetência, responsabilidade, depredação, inocência, averiguação, punição, manifestação, pacificação, ordem, liberdade, forças, instituição, Constituição... têm decodificações quase que precisas. A palavra golpe também a tem! Não vi, não sei, não estava lá, esqueci... não valem nessa hora aziaga pela qual atravessamos c-o-l-e-t-i-v-a-m-e-n-t-e. Nós, os 50,90% (60.345.999), nós, os 49,10% (58.206.354) estamos vivenciando o depois; o Agora. Parou! Chega! A diferença -  que até cabe em uma sacola de mercado - foi a suficiente para que a Democracia fosse e permaneça imperativa. Que siga o baile e a História: quem ganhou governe; quem perdeu espere o próximo bonde! É assim. Está assim: USVs sem bandeirinhas; camisas amarelinhas nas gavetas; hinos e marchas dentro dos quartéis.

Não, não é suficiente pegar o bando de zumbis, analfabetos funcionais e políticos que perambularam física e dementemente depredaram as instituições democráticas da Praça dos Três Poderes, fluindo leves e soltos por Brasília como se fosse Carnaval. Não é suficiente isolá-los na Papuda, ou na Colmeia, nem os liberarem portadores de novos apetrechos (que alguns até ostentam com orgulho) nos tornozelos. Não é.

Buscar os idealizadores, os que tinham mando pra mandar... os (sabidos) articuladores... os roteiristas da trama e  deixar tudo muuuuito claro, nesse filme de terror em que a Pátria foi vilipendiada, anarquizada, ferida é o que urge.

Está tudo claro. Claríssimo. Mais do que nunca imagens captadas falam mais do que mil palavras; elas, minuciosamente, dizem tudo. Transparência, senhores! Eu exijo!

Sobre o Dia da Infâmia que nos assolou em 8 de janeiro...

EU QUERO SABER TUUUUUDO!!!!

Professora Maria Angela Colho Mirault

Doutora em Semiótica

 

sábado, 29 de outubro de 2022

É Tempo de Celebração

 



O Brasil precisa e vai voltar ser mais feliz, harmônico e amoroso.

A Alma da Pátria de degredados, pobres e excluídos não será capturada!

Há uma Ordem. Essa ordem é Divina e inquebrantável.

Sob os Desígnios de Deus, a Vontade Vigilante de Jesus e a Guarda Diligente de Ismael, tudo será dizimado pela Força da Luz que já emana do Alto do Cruzeiro, no céu abençoado do Brasil.

O predestinado volta e com ele a Alma da criança, do jovem, do adulto e do idoso brasileiro; a vibração dos que partiram como mártires desse tempo obscuro pelo qual passamos, volta a sorrir.

É e será o começo do fim do fundo do abismo a que nos permitimos lançar, inebriados pela “mensagem” do mensageiro da ilusão, da mentira e da reverberação das Sombras, que não só tentam voltar do passado, mas fixar-se na Pátria do Evangelho.

Não é mais! Tudo mudou. O mundo muda! O Brasil muda! O exército do mal foi instado a se afastar, pois não há mais lugar para a manutenção sombria do engano, muito menos do ultraje  de Almas incautas capturadas. Todos acordarão. Todos!

É hora de AGRADECER e OFERECER tudo o que pudermos para que aqueles que permanecem no erro por interesse ou fixação se libertem, cada um no seu tempo, rumo à Nova Terra e a um Novo Tempo que de há muito já reside no Horizonte da Pátria Brasileira.

A hora é de LIBERTAÇÃO das CONSCIÊNCIAS!

Vibremos no AMOR e na PAZ. Tudo já foi preparado. A CEIA DO SENHOR está em festa, e, à partir de então, mais uma estrela no Céu fulgurará.

Comemoremos!

Confiança!

Fé!

Determinação!

A Ceia preparada espera por todos. ´

É TEMPO DE CELEBRAÇÃO!

FESTEJEMOS, POIS!

Por Maria Angela Mirault, em nome de Todos Nós/ MENSAGEM SOB INSPIRAÇÃO NA NOITE DE 29.10.2022, às  21H30

domingo, 16 de outubro de 2022

Como micro-organismos



Foi a curiosidade filosófica ancestral de explicação do mundo que desvelou leis e verdades absolutas sobre tudo. Por um tempo esse paradigma que deu origem à Física Clássica nos contemplou. Contudo, foi a dúvida e a insubordinação filosófica debruçada sobre os mesmos fenômenos que nos legou um novo jeito de olhar e tentar compreender o que existe fora de nós. A partir de então, iniciou-se uma revolução epistemológica. Há, sim, um novo e surpreendente modo de olhar o tudo. Paradigmas inalteráveis foram ampliados. Há que se considerar, a existência de um ente que olha, determina o que vê, o transforma e nada mais é o que é. Mais ainda: não há um lugar fora a ser apreendido; as coisas não são como são, mas, como somos aptos a vê-las. São, portanto, o que nos parecem ser. O que vejo (se destaca de um todo), me vê também. Há um corte e um foco e esse foco destaca, do corte que fiz da realidade a qual direcionei meu foco e a co-criei. Nova fórmula de decodificar o mundo, as pessoas, as ideias... se impõe. Se estou interessado em direcionar meu foco em um “ford-k”, o “ford-k” passa a se interessar por mim; aí, só vejo “ford-k”; não vejo “ferrari”, “mercedes”, nem “fusca”. Tem gente que sabe intuitivamente usar isso a seu favor e em prol de sua ideologia: fala o que se quer (ou, se pode) ouvir. Líderes totalitários (de todos os tipos e seitas) o fazem bem.  Seja lá porque o recorte – e o foco - se assemelhe ao nosso, seja porque o nosso se assemelhe ao deles. De semelhança em semelhança, comunhão em comunhão, uma egrégora é formada; lugar do imponderável, onde dormem as verdades, que, acolhidas, dão lógica a tudo. Na egrégora pertencemos; pensamos e agimos como manada, irmanando forças e dando energia e forma ao todo.

Uma egrégora é a força inefável, não verificável, não visível, não mensurável formada a partir de campos de energias comuns e coletivas de pensamentos e sentimentos; de olhares peculiares sobre tudo. Esse campo - de códigos comuns e sentimentos similares - se forma e é mantido por padrões frequenciais vibracionais de um determinado grupo de adeptos. Essa semiose de significações contida nessa semiosfera de simbolizações do real – inapreensível em sua objetividade – forma o caldo onde moram as ideologias, as concepções, os “eu-acho-quê”; em seu extremo, o fanatismo e o fundamentalismo. Não são amorfas, ou inocentes, são altamente infecciosas; buscam uma homeostase no fluxo dos seus semelhantes, e, como todo micro-organismo que se preza propaga-se aleatoriamente, desde que captada pelo recorte de quem se identifica, olha e recorta esse pedaço do todo, dele se apropria e nele passa a sobreviver.

Não há jeito; somos facções polarizadas por processos de homeostases singulares. Neste momento, especificamente, constituímos e habitamos egrégoras física e extra-física impermeáveis. Queiramos ou não, optamos por fazer parte de uma delas, seja por inclusão, seja por exclusão. Do mesmo modo que a vemos, ela nos vê, e, tal como seus componentes, captamos, compreendemos e expressamos o que vemos.

Ninguém vê “ford-k” quando foca em “Ferrari”. Resta-nos saber que, em busca da homeostase, devagarzinho, somos nós quem nos deixamos capturar por essa ou por aquela egrégora; aquele campo de força de energias comuns. É bom saber que as egrégoras não morrem; organizam-se homeostaticamente. E, assim, o ato de pertencer e de se alinhar a essa ou aquela é de nossa inteira responsabilidade. Melhor: podemos abandonar um campo patogênico de produção de doenças, e, migrar para outros que nos ofereçam inúmeras e benéficas possibilidades. Sobreviver é preciso; saber o como é arbitrário e pessoal. Podemos optar simplesmente em sermos patógenos, ou antígenos; fungo ou penicilina; vírus ou vacina.

Maria Angela Coelho Mirault

Professora Doutora em Comunicação pela PUC de SP

Campo Grande, 19.09.22

 

 

 

 

terça-feira, 23 de agosto de 2022

Torre de Babel


 


Embora alguns ainda creiam possíveis alterações do cenário, os campos estão delimitados, demarcados, intransponíveis e deflagrados. Vai haver embate e Plebiscito, sim. Há um ruído retumbante para o estabelecimento de qualquer entendimento entre os combatentes: quem é quem já o é e ponto final. Tudo agora é possível diante da escolha de Sofia. Somos todos, sob o mesmo “pavilhão de justiça e do amor”, o mesmo “pendão da esperança”, nós e eles.

À luz de teóricos e teorias respeitáveis, concebi a tese de que a Cultura é um ruído considerável (de qualquer possibilidade) para o estabelecimento da comunicação. Esta, sim, um fenômeno imponderável e submisso a um sistema de códigos, premissas e verdades intrafronteiras semióticas - lugar onde se dá a captação, a interpretação e a compreensão de um mesmo fenômeno. É assim que todo processo de estabelecimento da comunicação se dá em um ambiente circunscrito a um contexto habitado pelas concepções culturais peculiares que, nós, estudiosos, denominamos semiosfera.  É por isso que ninguém entende ninguém; cada lado da trincheira detém um peculiar patrimônio cultural que lhe confere certo padrão de organização “do mundo” e lhe confere a singularidade do seu ambiente ecologicamente semiótico, único em sua complexidade, e, pelo qual - é só pelo qual – é capaz de enxergar, captar, interpretar e expressar o outro, a vida e o que lhe aparenta ser, pois é esse contexto semiótico - e espaço de lealdade que lhe abriga - que o mantém na singularidade de pertencente a uma ordem e reconhecimento social, mesmo que anticivilizatório.

Agimos com o modo como codificamos e decodificamos o mundo. Cada “lado” do embate que se confronta é composta e alimentada por miríades de microculturas individuais, que, somadas, dão o contorno final daquele campo maior; todas as concepções individuais forjadas ao longo da vida fornecerão os ingredientes do fechamento das convicções; absolutamente inatingíveis e abertas à outra forma de concepção de mundo.

Dado ser a Cultura a memória não hereditária, significada, armazenada e transmitida por um grupo aos seus iguais, é, também o lugar propício à ressignificação de códigos de linguagens do outro, do desigual, do diferente, desde que em prol de um mínimo de entendimento e compartilhamento de ideias e ideais.  Existe, sim, uma região de fronteiras intersemióticas, bilíngues de culturas distintas que necessitam intercomunicar-se e relacionar-se dialogicamente. Existe, sim, um lugar que permite tanto a internalidade quanto a externalidade de “verdades”. Nessa região limítrofe e porosa de fronteira-cultural, a troca de informações entre sistemas aparentemente incomunicáveis, é possível, porque, viver é justamente ser capaz de ressignificar e confrontar códigos de lealdade; superar esses códigos de forma majorante; abandonar premissas; aceitar e adquirir novos contextos de compreensão do mundo e da vida; agregar; compreender; se preciso, mudar de opinião; de rumo; de cara; de identidade. Irmos ao encontro do outro, do divergente, do aparente inexpugnável é objetivo da própria vida.

O fechamento espiritual-cultural a que nos submetemos evidencia-se porque ainda carecemos de figuras mitológicas que nos justifiquem o que somos e aos nossos atos. Mas, urgente é, nesses tempos trevosos, que, àqueles a quem foi dado enxergar - nesse espaço de fronteira intersemiótico - continue a ver; a analisar e a acreditar na construção de um novo paradigma ético-político-social que nos permita a imprescindível interlocução entre os entrincheirados de agora. Nem nós nem eles: todos estamos conflagrados aos resultados nesse plebiscito imposto pela Torre de Babel Cultural a que nos colocamos. Quem viver, e enxergar, verá. Que o Espírito Democrático do Tempo prevaleça dentre e entre nós, em Terra de “Santa” Cruz.

 

Maria Angela Coelho Mirault

Professora Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC de  SP

Campo Grande, MS, 3.08.2022