Lavemos nossos pés
Durante o pregão e confiante
de seu lugar de fala, o celebrante dirigiu-se aos fieis e disse: “todos vocês” são
pecadores; eu também o sou! Será? Teremos, nós - pequenos e vulneráveis mortais
- que pagar por aqueles pecados que assombraram nossa infância, do caderninho-de-deus,
na porta-do-céu; aquela continha enooooorme cobrada no “juízo-final”?! Afinal,
quem é o pecador? Aquele emaranhado com as agruras da própria vida, que metendo
os pés pelas mãos, sai do eixo da virtude e segue na vida como pode, como sabe,
como viu, como aprendeu? Aquele que sabe que peca e, mesmo assim, se pauta no
pecado? Será aquele que sabe que erra e finge que não sabe que erra e vaaaai? Rebanho
de pecadores, estaremos destinados ao descarte e ao caldeirão? Será que essa roda do Sansara nunca terá fim?
Será que aquele
homem que dividiu a História e o calendário, que lavou os pés dos seus
discípulos - signo e mensagem da compreensão e do perdão - pensaria isso de
nós? Não, certamente que não: estaria ao nosso lado, nos acolhendo, consolando
e clamando aos céus, de novo, por nós: “Pai, perdoai porque eles não sabem o
que fazem”.
A regra de ouro do
percurso de qualquer Mensagem é a premissa categórica de que jamais teremos as
condições ideais para a traduzi-la, tal como se originou; a comunicação é mera
possibilidade. Ainda entendemos tudo errado (origem de todos os conflitos). Tudo
que nos soa aos ouvidos, assim como a tentativa que empreendemos, não passa de
um esforço peculiar e individual de compreensão, de acordo com nosso potencial
de competência. Mas, a pureza mesma
entre Emissão-Recepção nunca se dará. No trajeto, sofrerá transformações, impregnada
que será de crenças, valores e filtros culturais. Por isso somos tantas vozes
dissonantes sobre um mesmo tema. Sempre.
As religiões
judaico-cristãs ainda nos fazem rememorar a “morte” do judeu na cruz; não a celebração
e vitória da vida do judeu sobrevivente; signo e mensagem de sua peregrinação
entre nós. Talvez, nunca entendamos aquele
jovem homem de 33 anos que se conduziu ao calvário; que, antes, expulsara vendilhões.
Àquele que se apresentou e se submeteu ao Sinédrio, sem temor; que não disse
nem negou que era, ou não, Filho do Homem; que vinha trazer a Boa-Nova da Vida
Eterna. Do alto de sua grandeza, preferiu optar por comprovar sua Mensagem de
Ouro, vivenciando e deixando-se levar à humilhação, ao reproche; às
admoestações criminosas. Quando nos
legou do alto das Oliveiras o seu pedido de perdão, sabia bem que estava
lidando com o povo de Barrabás. Sem dúvida, a mídia exibirá inúmeras paródias
da tragédia. Encenações se propagarão pelas cidades; o cenário hediondo do
calvário será remexido e repetido incessantemente. Mas, a Mensagem de Ouro com
o qual comprovara todo seu propósito de vinda e vida entre nós, não nos será,
de novo, compreendida, nem exaltada. Sequer, será ouvida. Nessas “comemorações”,
Barrabás ainda é o nosso herói.
Nestes dias significativos e simbólicos, na intimidade de nossas vidas,
lavemos, pelo menos, as poeiras dos nossos pés. Não lamentemos nem celebremos a
morte. Reflitamos e acordemos para a Mensagem da Vida Plena, tão mal
decodificada naquele e nesse tempo. Não, não somos pecadores, senhores do
templo; temos, sim, um longo caminho a caminhar, com honra e respeito, mesmo
sem entender por que. Mas, o inferno não será nosso pódio.
Maria Angela Coelho Mirault
Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC de SP
Campo Grande, MS, 13 de abril de 2022
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