sábado, 12 de julho de 2008

NÃO TROQUE O VELHO...


Não troque o velho pelo novo se não vai saber usar
Ela não tinha a menor necessidade de trocar o aparelho celular. Resistiu à oferta da operadora por quase três semanas. Acreditando-se ecologicamente correta, não via sentido em atender ao apelo do consumo irrefletido, alienado e irresponsável. Pensava: o que se irá fazer com tantas e tantas baterias descartadas pelo mundo a fora?Naquela manhã, porém, foi ao shopping, fazer o que toda mulher faz ao ir a um shopping. Antes de ir embora, porém, lembrou-se de conferir à oferta da operadora. Resultado: saiu da loja com um novo e “gratuito” aparelho de celular. Para o antigo, encontrou nova função, configurando-o em uma linha pré-paga - quem sabe, em uma necessidade qualquer ele estivesse disponível. Pura e racional justificativa para não ter que lidar com sua consciência. Já que capitulara e, se era para trocar, escolheria o que possuísse mais recursos. Eliminados pelo critério das possibilidades de uns em relação à falta de recursos de outros, decidiu-se e escolheu o mais completo. O seu novo aparelho dispunha de câmera fotográfica, vídeo, rádio FM, mp3, e tudo o mais o que se imagina, inclusive, chamadas e recepções telefônicas. Óbvio que teria que estudar o manual, para um dia adquirir a competência de utilizá-lo adequadamente. Porém, o máximo que fez foi adicionar seus contatos, sem disposição de entender seu novo equipamento. Assim, apenas folheou o manual. E, esqueceu-se do básico: de ler a página de orientação de como ligar e desligar o aparelho. Até aí, tudo bem, se não tivesse uma viagem de avião a realizar. Antes de dormir, programou o despertador do celular, mas, praticamente, não dormiu, com medo de não tê-lo feito adequadamente, mas ele despertou. Na saída, esquecera o dito cujo. Voltou. Não há mais a menor possibilidade de se sair de casa sem o celular, pensando que não fazia muito tempo em que não só se podia, como se saia de casa, viajava-se, até, sem essa preocupação. Cumpriu os ritos do aeroporto e embarcou com a bendita maquininha em sua bolsa. Guardou sua bagagem de mão e acomodou-se em sua poltrona. Estava tudo bem, pensou. Porém, portas fechadas e as recomendações iniciais do comissário de bordo, trariam a tona um pequeno detalhe: a página do manual de como desligar o celular novo! Levantou-se apressadamente, abriu o bagageiro e buscou sua bolsa. Lá estava ele, lindo... Mas, ligado. Imaginou que conseguiria desligá-lo facilmente, pois, qualquer coisa que se liga, supõe-se, deveria poder ser desligada com facilidade; é assim na vida. Com as mãos dentro da bolsa, iniciou uma nervosa operação de apertar botões, funções etc, e, nada. Não encontrou nada parecido com o ícone “desligar”. Aparentando controle da situação e para que ninguém ao seu lado percebesse, continuou a tentativa, furtiva, como se estivesse prestes a cometer um pecado, um assassinato em massa, talvez. O piloto informava a equipe de bordo que o avião preparava-se para decolar, enquanto ela não conseguia entender aquela geringonça! Pensou em solicitar ajuda a um dos comissários, mas não teve coragem; já pensou que mico? Continuou tentando, até que encontrou o ícone “desativar” qualquer coisa. Ufa! apertou: é esse! Fechou a bolsa, colocou-a a frente de sua poltrona. O passageiro ao lado encarou-a brevemente. Teria notado ou era só uma paquera matinal? Mas, e se aquela não fosse a função adequada? E se o celular estivesse ligado? E, se, ligado, tocasse? Bem, seria um pouco improvável que alguém lhe ligasse às 5 da manhã. É, mas não seria impossível: 10 % de chance, talvez. Mas, e se a bendita maquininha ligada fizesse o avião cair? E se o avião caísse só por causa da sua aquisição impensada e consumista, e, todas aquelas centenas de pessoas terminassem sua viagem mais longe do que imaginavam e fossem todos para a estação do além (da vida)? Já não pensava na sua, e exclusiva, morte Com certeza, nem do lado de lá escaparia da fúria dos seus companheiros de viagem. E, se já não fosse um ato consumado, ao tomarem conhecimento de que fora o seu celular ligado o responsável pela tragédia que os vitimara, certamente, a matariam (de novo!). Tentando racionalizar, pensou: não seria ela a primeira a passar por essa situação durante um vôo. Quantas vezes não teria tido sua vida colocada em perigo e viajado com alguém, que tal como ela, não soubera desligar seu celular. Fechou os olhos e prestou atenção na decolagem; até aí, tudo bem, o avião decolou. Aguardou o serviço de bordo que, por sua vez, também, transcorreu normalmente; tudo bem. E a aterrissagem como seria? Chegara ao chão sem qualquer problema, tudo bem. Seu potente e altamente tecnológico-celular, com uma função qualquer “desativada”, não tocou durante todo o vôo, nem fez a aeronave cair. Ao chegar ao seu destino, foi, avidamente, buscar nas páginas do manual a instrução de como desligá-lo. Lá, no item que descreve “seu celular”, em “teclas e peças” encontrou “tecla de ativação (11)”, um minúsculo e convencional ícone de play, branco sobre branco, em sua parte superior. Fácil, como a vida, antes do celular.


Goiânia, 11/07/2008

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