sexta-feira, 26 de setembro de 2008

TECENDO A MANHÃ (João Cabral de Melo Neto)

"Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe o grito que ele dá e o lance a outro; de um galo que apanhe o grito que um galo antes dá
e o lance a outro; e de outros galos que com muitos galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos". É mesmo isso: vamos tecendo o amanhã."

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

PORQUE AINDA NOS MANTEMOS TÃO MEDÍOCRES




Nunca me pareceu tão atual como agora a tese que o ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger[1] faz a respeito da mediocridade. O talhe que lhe dá, caberia a qualquer lugar e, com rigor, vestiria nossa própria e medíocre realidade.
Com cuidado, alinho-me à sua lógica e acolho sua constatação universal. Vivemos mesmo um mundo e uma realidade medíocres. Contudo, creio que a mediocridade - que assinala o espírito de época e invade nosso cotidiano - talvez não nos seja, simplesmente, uma imposição, havendo, ainda, para alguns de nós, um fator decisivo: a opção.
Quer seja por indiferença ou acomodação, no atacado, a mediocridade é mesmo nosso credo e nosso desejo, mas, significa, também, nosso flagelo e nossa própria morte social. É ela quem travesti um certo tipo de gente, transformando-a em utilitário de determinado – ou quase todo - tipo de sistema.
Recorrendo a uma citação secular, Enzensberger, logo de início, indaga, qual seria a importância dos gênios e constata que muito mais importantes são os homens úteis, pois, destes são, apenas, exigida “uma feliz combinação de dons e habilidades, uma certa mediocridade que não se eleva até os gênios e pensadores”. Para atingi-la, basta, apenas, que não se deixe afundar até a condição de pobre-diabo, que se atente em alcançar uma grandeza média, de forma a atingir o ponto de utilidade que se deseja e que a coletividade precisa.
Enzensberger determina a origem da mediocridade no fato de que não esperamos muito de nós mesmos, acostumando-nos ao autodesprezo, por isso, nos é tão fácil optar pela utilidade medíocre, sem muito esforço. Mas, não seria esta também, opção semelhante a de pobres-diabos? Não seria esta a pior das escolhas?
De certo, que, a submissão à mediocridade é questão de escolha individual. Somos nós que preferimos assumir o personagem-sapo da psicanálise, mantendo o personagem-príncipe inacessível. Criados como galinhas, preferimos ocultar a águia que habita em nós, subsumidos aos costumes do galinheiro. Sem tomarmos consciência de que, somos, por natureza e identidade, príncipes e águias, deixamo-nos enfear e domesticar, limitando-nos por viver essa realidade que nos consome.
Estar (e não ser) medíocre é nosso escudo, nossa complacência, nossa cumplicidade com o mundo, com as coisas, com os outros. Ser medíocre é mais confortável e muito mais prudente. Submetidos a uma mediocracia consolidada, vivemos, trabalhamos, nos divertimos, criamos nossos filhos. Travestidos em sapos e galinhas, deslocamo-nos – ou não - cotidianamente de nossas casas e nos conectamos com o mundo. Imobilizados e na condição de utilitários, mascateamos nosso capital intelectual, nossa força de trabalho, às instituições, e, nos submetemos a chefias e modelos administrativos medíocres. É como medíocres que deixamos de nos importar “com os fundamentos elementares da vida, como a tranqüilidade, o clima, a vegetação, o ar e a paisagem”, alerta-nos o autor.
Para subsistir, prudente é que se assuma a utilidade que o mundo quer, a docilidade indiferente que ele determina. Somos números insignificantes de uma massa que, “manipuladas por forças sinistras”, se deixa transformar “num bando de idiotas consumista”, constata-nos o ensaísta alemão. É, também, pela apatia que a maioria silenciosa nem acredita ter-se transformado “em zumbis, marionetes ou fantasmas, e nem mesmo lhes ocorre a possibilidade de confundir sua realidade com uma “simulação”, diz-nos ele.
Ao abordar sobre o perigo da resistência, alerta-nos: “(...) o médio não é apenas um postulado de lazer, mas a medida de todas as coisas e a chave do sucesso. A existência econômica e psíquica da maioria é garantida pela mediocridade, e qualquer um que acredite poder ignorá-lo incorre num perigoso erro”. Não ser medíocre, ou não parecer medíocre, e, resistir ao espírito de época, que nos sufoca, é quase assumir uma personalidade psicótica, tornar-se um relegado, um exilado do seu próprio espaço, de sua própria pátria.
Contudo, fácil é reconhecer, distinguir e assinalar um ser que abjeta se categorizar e se regozijar na mediocridade. Ele é claramente identificável, pois não consegue esconder-se, metamorfosear-se, ou sucumbir. Cônscio de sua origem e natureza, identificado com seu lugar e papel no mundo, ele é um inconformado. Diante da simulação e do domínio do medíocre e sob o império da mediocridade, ele é um indignado. Estertora, mas sobrevive. Acende fachos, onde trevas se instalaram, deixando rastros e sinais irremovíveis. Mesmo vencido, não se lhe pode negar e reconhecer a identidade de sua força. Mesmo quando ferido e aparente sucumbir, não se submete, resiste e sobrevive. É um mutante.
A luta entre eles será grande e árdua. Haverá momentos em que quase parecerá perdida. Mas, serão eles, os que, se reconhecendo príncipes e águias, salgarão (e já salgam) a Terra com suas singularidades. Que se reconheçam e se somem. A cada resistência, a cada violação, evidenciarão, incontáveis vezes, que, por mais que as evidências e as aparências demonstrem, os fins não justificam os meios e não serão os medíocres que herdarão a Terra.



[1] ENZENSBERGER, Hans Magnus. Mediocridade e loucura. São Paulo: Editora Ática, 1995. Nascido em 1929, representa desde a década de 1960 um dos pólos intelectuais da Alemanha atual: um dos pensadores que (...) tem estado invariavelmente no centro das discussões políticas, culturais e literárias da vida alemã e européia.

domingo, 21 de setembro de 2008

COMO PEIXINHOS...

Se os Tubarões Fossem Homens
Bertold Brecht

Se os tubarões fossem homens, eles seriam mais gentis com os peixes pequenos. Se os tubarões fossem homens, eles fariam construir resistentes caixas do mar, para os peixes pequenos com todos os tipos de alimentos dentro, tanto vegetais, quanto animais. Eles cuidariam para que as caixas tivessem água sempre renovada e adotariam todas as providências sanitárias cabíveis se, por exemplo, um peixinho ferisse a barbatana, imediatamente ele faria uma atadura a fim de que não morressem antes do tempo. Para que os peixinhos não ficassem tristonhos, eles dariam cá e lá uma festa aquática, pois os peixes alegres têm gosto melhor que os tristonhos.
Naturalmente, também, haveria escolas nas grandes caixas, nessas aulas os peixinhos aprenderiam como nadar para a goela dos tubarões. Eles aprenderiam, por exemplo, a usar a geografia, a fim de encontrar os grandes tubarões, deitados preguiçosamente por aí. A aula principal seria naturalmente a formação moral dos peixinhos. Eles seriam ensinados de que o ato mais grandioso e mais belo é o sacrifício alegre de um peixinho, e que todos eles deveriam acreditar nos tubarões, sobretudo quando esses dizem que velam pelo belo futuro dos peixinhos. Se encucaria nos peixinhos que esse futuro só estaria garantido se aprendessem a obediência. Antes de tudo os peixinhos deveriam guardar-se antes de qualquer inclinação baixa, materialista, egoísta e marxista. E denunciaria imediatamente os tubarões se qualquer deles manifestasse essas inclinações.
Se os tubarões fossem homens, eles naturalmente fariam guerra entre si a fim de conquistar caixas de peixes e peixinhos estrangeiros. As guerras seriam conduzidas pelos seus próprios peixinhos. Eles ensinariam os peixinhos que, entre os peixinhos e outros tubarões existem gigantescas diferenças. Eles anunciariam que os peixinhos são reconhecidamente mudos e calam nas mais diferentes línguas, sendo assim impossível que entendam um ao outro. Cada peixinho que na guerra matasse alguns peixinhos inimigos da outra língua silenciosos seria condecorado com uma pequena ordem das algas e receberia o título de herói.
Se os tubarões fossem homens, haveria entre eles naturalmente também uma arte, haveria belos quadros, nos quais os dentes dos tubarões seriam pintados em vistosas cores e suas goelas seriam representadas como inocentes parques de recreio, nas quais se poderia brincar magnificamente. Os teatros do fundo do mar mostrariam como os valorosos peixinhos nadam entusiasmados para as goelas dos tubarões. A música seria tão bela, tão bela, que os peixinhos sob seus acordes e a orquestra na frente, entrariam em massa para as goelas dos tubarões sonhadores e possuídos pelos mais agradáveis pensamentos. Também haveria uma religião ali.
Se os tubarões fossem homens, eles ensinariam essa religião. E só na barriga dos tubarões é que começaria verdadeiramente a vida. Ademais, se os tubarões fossem homens, também acabaria a igualdade que hoje existe entre os peixinhos, alguns deles obteriam cargos e seriam postos acima dos outros. Os que fossem um pouquinho maiores poderiam inclusive comer os menores, isso só seria agradável aos tubarões, pois eles mesmos obteriam assim mais constantemente maiores bocados para devorar. E os peixinhos maiores que deteriam os cargos valeriam pela ordem entre os peixinhos para que estes chegassem a ser, professores, oficiais, engenheiros da construção de caixas e assim por diante. Curto e grosso, só, então, haveria civilização no mar, se os tubarões
fossem homens.

sábado, 20 de setembro de 2008

E NÓS?


Maiakovski, poeta russo "suicidado" após a revolução de Lenin, escreveu, ainda no início do século XX:

Na primeira noite, eles se aproximam e colhem uma flor de nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem, pisam as flores, matam nosso cão. E não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles, entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada.

· Parodiando Maiakovski, Bertold Brecht (1898-1956) escreveu:

Primeiro levaram os negros. Mas não me importei com isso. Eu não era negro.
Em seguida levaram alguns operários. Mas não me importei com isso. Eu também não era operário.
Depois prenderam os miseráveis. Mas não me importei com isso. Porque eu não sou miserável.
Depois agarraram uns desempregados. Mas como tenho meu emprego. Também não me importei.
Agora estão me levando. Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém. Ninguém se importa comigo.


· Parodiando os dois, Martin Niemöller, 1933 - símbolo da resistência aos nazistas, deixou registrado:

Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e me levaram; já não havia mais ninguém para reclamar...

E nós?