segunda-feira, 19 de julho de 2010

ACABOU O RECREIO

Povo, ô povo, escute: falta pouco menos de três meses. A oportunidade ímpar vai estar em suas mãos; precisa dar-se conta de que a hora do recreio terminou. Faça-nos o favor, agora que as férias das crianças acabaram: acorde! As bem-vindas eleições majoritárias estão vindo aí. Prepare seus ouvidos, abra bem os seus olhos. Nada de ficar entediado e distraidinho na hora da propaganda eleitoral obrigatória – não desligue o rádio nem a tevê, pelo contrário, aumente o som, pare tudo que estiver fazendo; a hora é séria – embora, muitas vezes, a gente não se contenha frente ao grotesco que se apresenta. Preste bem atenção na cara dos candidatos, nos seus trejeitos, na roupa que estarão usando, e, mais do que nunca, no seu sorriso. Dizem os estudiosos da cultura que a gênese do sorriso está na demarcação de espaço. Quando um animal se deparara com outro, mostra-lhe os dentes, e, com isso, demarca sua fronteira. Então, povo, preste atenção nessa mídia primária que é o nosso corpo, a nossa cara, o nosso gestual. Essa é uma mídia que não mente; tudo se revela. Substanciado pelo gestual descompassado e alvíssimo sorriso marqueteado, por seu intermédio, você decodificará o subtexto na fala dos candidatos. Assim perceberá que não há verdade na mensagem lida sem a entonação devida (já que, na maioria das vezes, não foi pensada nem escrita por ele). Não caia nessa. Preste toda sua atenção na pessoa que está pedindo seu voto, isso já é uma ótima dica.
Procure lembrar, ô povo, em quem você depositou sua confiança nas últimas eleições. Veja se o seu candidato fez a metade do que prometeu; se fez, ótimo, fez valer o seu voto. Eles são meio assim como a gente quando faz promessa e paga só a metade; o santo aceita. Aproveite e procure lembrar se você cobrou alguma coisa dele, se se interessou em ter seu endereço eletrônico, saber quem do seu gabinete poderia lhe dar alguma informação sobre o mandato que você afiançou e ajudou a outorgar. E, sobretudo, preste atenção aos jornais, escritos e televisuais. Se puder, às revistas também. Essas mídias podem até aumentar os assuntos, torcer as verdades, mas não mentem, principalmente, porque os advogados estão afiados e competentes nas demandas processuais. Se tiver notícias de corrupção envolvendo o seu político, caia fora, por mais que ele jure por sua mãe mortinha ser inocente. De modo geral, um boato traz em seu bojo algum fundamento, um tantinho assim de comprometimento: onde há fumaça há fogo.
Ah, informe-se sobre os sinais de enriquecimento ilícito. Carros, casas, fazendas, promoção de festas familiares absurdamente ostentosas, mudança no layout visual (o dele e o da patroa) são ótimos vestígios – certos programas na tevê e alguns semanários de distribuição gratuita costumam explorar essas coisas. Procure, também, informar-se se o político que você elegeu mudou de partido, esse também é um dado assaz importante, nessa hora.
Não se esqueça daqueles oportunistas que, em datas comemorativas (Natal, Ano Novo, Dia das Mães etc) expuseram-se nos outdoors. Esses não merecem uma nova chance, pois, a vaidade e a falta de simancol já são motivos suficientes para que não se reelejam.
Atenção aos financiadores de campanhas e aos cabos eleitorais, pois, os primeiros ocupam, ou influem, no primeiro escalão, enquanto os segundos costumam virar segundo escalão de governo. Às vezes, esses espécimes mudam muito seu padrão de vida em quatro anos (imagina em oito), alguns conseguem até subir da classe Z para classe A, sem escala.
Povo, ô povo, atente para a seriedade deste momento. Fala sério, com os índices epidêmicos de criminalidade, de violência, de baixo aproveitamento escolar, de doenças, não dá para a gente brincar. Não reeleja ninguém que tenha deixado dúvidas, marcas, desassossego. Afinal, você luta tanto com a vida e a sobrevivência; pagando todas as suas dívidas com juros e correção...
Se as campanhas estão tão caras - fala-se e se anuncia milhões pra cá, milhões pra lá - divida esses custos pelo tempo do mandato e você vai ver facilzinho que a conta não fecha, alguém vai estar comprando alguma coisa e outros devendo a alguém; são os tais comprometimentos de campanha. Embora, com a nova legislação, anuncie-se que esse ano a coisa vai estar mais controlada, não se iluda, os marqueteiros estão a todo vapor na busca das brechas e nas brechas quem dança é você.
Não dê outro cheque em branco para o seu candidato político. Faça valer sua vontade; não tem cesta básica que valha essa sua delegação. Não há dinheiro que pague a sua opção livre e determinada de escolher o seu candidato a um mandato de quatro ou oito anos. É você escolhendo alguém para representá-lo. É você assinando a carteira (e a aposentadoria) de trabalho dele; o cheque dos móveis e imóveis que adquirirá, das viagens que toda a família e, às vezes, os amigos farão; e, empregando seus incontáveis assessores.
De certo que haverá (tomara) gente em que valha a pena votar; será como procurar agulha em palheiro. Mas, se você foi capaz de pagar várias ligações para decidir quem “mereceria” ganhar um milhão, na décima edição do Big-Brother-Brasil, e, por quase quatro meses, observou atentamente as futricas entre os concorrentes, eliminando-os semana a semana, você saberá fazer o mesmo nesse momento de grande-big-brother-nacional. Certamente, saberá identificar um candidato, que, dentre os demais, estará mais capacitado para gerenciar suas contas; administrar seu condomínio.
Povo, ô povo, sobretudo, não se prostitua. Não se venda. Acorde, observe e aja. Quem sabe, assim, possamos sonhar com um futuro mais digno e com quatro anos de uma vidinha melhor.

Publicado no jornal Correio do Estado, MS, 12.08.2010
"Ponto de Vista" - Caderno A, p.2.

Maria Ângela Coelho Mirault – Doutora e mestre em comunicação
Mariaangela.mirault@gmail.com
http://www.webartigos.com/authors/5858/maria-angela-mirault

segunda-feira, 5 de julho de 2010

VERGONHA DE “MIM”

Todos os extremos resultam de um déficit. Foi assim e está sendo assim o “meu” comportamento extremado de cidadão brasileiro, com a esperança, primeiro, e a perda, depois, do almejado hexa. Como “sou” passional e imaturo. Se tivéssemos alcançando o título e se ganhássemos a Copa estaríamos radiantes, a nação manter-se-ia em festa, o Olodum expressaria ininterruptamente nossa imensa felicidade. “Eu” ainda estaria festejando o gol de ombro do Luiz Fabiano, as falhas do juiz que nos beneficiou inúmeras vezes, afinal “sou” muuuuuuuuuuuito esperto. Nossos guerreiros estariam cultuados, o temperamento (extremado) e (para alguns) mal-educado do técnico seria admirado, exultado e significado. “Eu” não veria defeitos na equipe técnica, no trabalho e na escolha dos nossos representantes, na Copa. Mas, Felipe Melo (é ele, o cara!) não apenas “me” tirou o hexa; menino indisciplinado - segundo globais experts do futebol – fez muito mais. Felipe Melo mostrou a “minha” verdadeira cara. Como bipolar que “sou”, repentinamente saí do estado da euforia para o estado extremado da depressão. E a depressão fez emergir de “mim” o que tenho de pior, a cega e apaixonada ira. E essa emersão, não só está vindo a tona, como também, tem de ser expressa. Não, não, apenas, expressa. Tem de ser compartilhada; todos têm, o mundo têm, de saber da “minha” indignação. E é como indignado, que “fui” proclamar todos os impropérios e demonstrar o que existe verdadeiramente dentro de “mim” com relação à frustração de não ter “me” tornado hexacapeão, na África. Por um dia, o “minuto de ódio” - tão bem expressado por George Orwell, em sua obra 1984, regurgitou o sentimento nacional brasileiro. Bastaram poucos segundos para que eles – que até estavam bem – caíssem na mais abjeta das atenções midiáticas. Execração nacional foi o que aqueles meninos passaram a merecer.
Por um dia ainda na onda da ressaca, “encontrei” a forma de promover “minha” catarse, primeiro, na torcida contra a odiosa Argentina, e, à tarde, na possibilidade de vitória dos “meus” amados irmãos paraguaios.
Ah, que vergonha de “mim”!
“Eu” que estava tão certo de “minhas” atitudes e opiniões, vi no olhar apavorado de Felipe Melo, na chegada da seleção ao solo brasileiro, o quanto “estive” o tempo todo alterado.
Horrorizado, o jogador que há poucos dias se encontrava na iminência de tornar-se um herói-nacional, em seu olhar de menino, hesitava em dar o primeiro passo, na saída do aeroporto, de volta pra casa. Nunca talvez tenhamos testemunhado tanto medo capturado pelas lentes da tevê. Ali, ao vivo, para todo o planeta, o mais triste espetáculo que poderíamos proporcionar. Um de nós, parte de “mim”, apresentava o pavor da hostilização certeira, na recepção vergonhosa que “fiz”, sem dó nem piedade.
O choro compulsivo de Júlio Cezar nos braços de sua mãe envergonha toda uma nação de fanáticos torcedores.
Se tivessem chegado com a taça, mesmo com gol roubado, ou jogo comprado teriam tido outra recepção. Teriam sido catapultados ao pódio dos heróis brasileiros, porque, para “mim” o que importa é ganhar, seja como for.
Ah, que vergonha de “mim”!
Ah! que vergonha de mim, quando, agora, constato, o modo como recebi “meus” irmãos, “meus” compatriotas, como se “eu” nunca tivesse errado, como se “eu” fosse o mais ético e assertivo dos povos. Como vestal imaculada “apontei” para o alvo e como o mais cruel dos terroristas, “meu” fuzil para a cabeça de Dunga e do Felipe Melo, principalmente, pois, é preciso dar nome aos responsáveis pela “minha” desgraça; eles entrarão para a história; milhares de anos virão, mas a posteridade nunca esquecerá os culpados. Como fariseu, túmulo caiado que “sou”, estertorei “minha” ira, em “meu” minuto de ódio contra aqueles que não souberam representar a pátria brasileira.
Ah, que vergonha de “mim”!
Ah, e, agora, nessa vergonha de “mim”, emerge um sentimento contraditório; é a inveja que surge. Ah, que inveja do povo argentino, do torcedor argentino, da recepção aos perdedores pelas ruas de Buenos Aires.
Ah, que inveja deles, ovacionando Maradona, pedindo-lhe para que permaneça no comando da seleção derrotada do seu país.
O que será que eles aprenderam com a Copa, com a derrota nas oitava e que nós ainda não conseguimos aprender?
Bem-aventurados os que sofrem, pois que serão consolados. E assim foram recebidos os heróis argentinos: com compaixão, com admiração, com esperança, com amor, reconhecimento, gratidão, e, principalmente, com respeito, na volta ao solo da pátria-mãe.
Por que será que não podemos - não vimos e não pudemos - externar um pouco de compaixão? Compaixão pelo fracasso dos nossos compatriotas? Por que esquecemos tudo e no tribunal sem apelação da opinião pública brasileira - exageradamente reverberada pela mídia - condenamos e vilipendiamos nossos jogadores?
O que é que a Argentina está nos ensinando, meu Deus?
Bem-vindo Dunga. Bem-vindo Felipe Melo. Bem-vindo Júlio César! Bem-vinda, seleção brasileira. Não temam, mantenham a esperança, porque não estará longe o dia em que nenhum de vocês precisará expressar tanto medo no olhar, nem verter tantas lágrimas no regaço de suas mães. Dia virá, em que a maturidade nos ensinará que momentos como esse; derrotas como essas nos trarão lições de aprendizado. Um dia, “saberei” ter a exata dimensão de que o 2x1 da Holanda foi apenas um jogo e que, afinal de contas, todos vivemos no limite de nossas possibilidades e passíveis de cometer inúmeros gols contra.
Mas, enquanto isso não acontece, tenho vergonha de “mim”!


Maria Ângela Coelho Mirault é doutora e mestre em Comunicação e Semiótica.
Mariaangela.mirault@gmail.com

Publicado no jornal Correio do Estado, Campo Grande, MS, 07.07.2010
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