terça-feira, 28 de abril de 2009

ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO

O público e o privado não se reconhecem mais como distintos. De tanto serem confundidos, passaram a ter uma só identificação, tornaram-se siameses e andam juntos. Não se pode mais referir-se a um, sem a interferência do outro. Não há mais espaço para a discussão, a divergência no campo das idéias sem que essa divergência acabe com relacionamentos pessoais de décadas de fidelidade, companheirismo, compartilhamentos. Ter opiniões distintas não significa que deixamos de ter os referenciais qualificativos de antes, quando compartilhávamos relacionamentos afetivos, sinceros e respeitosos.
Um exemplo atual do público entendido como privado é a farra das passagens aéreas no Congresso Nacional, que alguns (nossos representantes) entenderam e ainda entendem serem portadores desse direito, revelando que o nepotismo, o clientelismo, o servilismo, a concupiscência, a omissão, e, mesmo, a corrupção passiva – já que a ativa é deliberada e fruto de outra fonte - permanecem cristalizados em nossa sociedade. É o privado, quando confundido com o público, que dá audiência e amplitude para as futricas e os boatos; reality shows; publicações sobre as celebridades e tantos e tantos outros projetos de programas televisuais, editoriais e, por que não, institucionais.
A amizade é confundida com cumplicidade, a discordância de idéias e atitudes com traição. Tudo sob o amparo absoluto da ignorância e da falta de substância de conceitos, falhas de caráter, fraquezas de espírito. Fala-se muito, mas conversa-se pouco, compreende-se menos ainda. Não se considera politicamente correto expor-se em discussões de cunho filosófico, ético, moral, partindo-se da premissa elementar - mas nem sempre acertada - de que existem coisas que não devem ser questionadas sem que uma crítica feita na esfera pública resvale para o campo da individualidade. E os relacionamentos imaturos e carentes amontoam-se no lugar-comum da indiferença do relacionamento entre bandos de anônimos, onde ninguém contradiz ninguém, mas, também, ninguém respeita mais ninguém; totalmente anestesiados; totalmente alienados e descompromissados, medrosos e covardes.
Confundir público com privado é o mais reles equívoco de quem exerce uma função pública representativa. A opção por essa condição sempre nos obrigará ao recolhimento dos nossos interesses, opiniões e atitudes pessoais, porque, quando se opta pela vida pública deve-se abster da emissão de opiniões privadas. A discussão pública de interesse privado, amplamente divulgada pelo canal televisivo do Supremo - com seus esgares e tiques nervosos midiatizados pela mídia fisionômica dos envolvidos - é um exemplo típico desse acoplamento e indistinção.
Entre pedidos de “respeite-me” e “vossa-excelência-não-pense-que-está-falando-com-um-dos-seus-capangas...”(capangas!, como assim?) o que se viu foi a mistura dessas identidades - togadas - misturando tudo e expondo suas míseras pendengas privadas em um ambiente público; suas idiossincrasias no âmbito do coletivo.
Há urgência em se ensinar e se aprender esses e outros conceitos, absolutamente, antagônicos. De certo, que não deveriam ser confundidos, e sequer, relacionarem-se; separados, deveriam ser mantidos e apartados por barreira intransponível. Quem sabe, esteja faltando espaço público, e, mesmo, privado (em nossas casas), para se estabelecer essas reflexões. Quem sabe, espaços como este, oferecido pelos jornais, possam ser vistos e tidos como espaços educativos-cidadãos? O artigo “Que que é isso minha gente” publicado no último dia 9, nessa página, obteve significativa repercussão, evidenciando isso: a possibilidade de diálogo e de ação. Precisamos muito divergir, refletir, mas, precisamos, mais do que tudo, posicionarmo-nos diante dos fatos que nos dizem respeito, sem medo, omissão ou acovardamento. Precisamos estudar mais, visitar com mais freqüência os dicionários, buscar os significados dos conceitos, das palavras e melhor nos prepararmos para o salutar exercício da comunicação, com vistas a uma comunicabilidade mais sadia, certos, porém, de que a comunicação será sempre - e apenas - mera possibilidade, tantas são as divergências constitutivas do nosso repertório pessoal, de nossas vivências e concepções. Por isso, quando nos perguntarem quanto são dois e dois, nem sempre a resposta correta será quatro, poderá ser vinte e dois, e ambas as respostas estarão absolutamente certas, dependendo, evidentemente, da ótica (dos valores e conceitos) e da opinião de quem fez o questionamento.



Maria Ângela Coelho Mirault Pinto
Doutora e mestre em Comunicação e Semiótica
http//: mamirault.blogspot.com
mariaangela.mirault@gmail.com

O artigo foi publicado no jornal Correio do Estado, Campo Grande, MS, em 04/05/2009

terça-feira, 7 de abril de 2009

Que que é isso, minha gente?!




Que que é isso, minha gente

Maria Ângela Coelho Mirault Pinto*

Não pude acreditar no que eu vi. Amanhecemos com inúmeras faixas assinadas pela Prefeitura de Campo Grande expostas em muitas ruas da cidade, desde a entrada do aeroporto até a saída para São Paulo, com alguns dizeres: “Campo Grande tem orgulho...” “Campo Grande torce por você...”. Orgulho de que, cara pálida? De uma moça que está “honrando” a cidade e o nosso povo, pelo simples fato de ser uma das finalistas do big-brother , e, simples assim, por isso, prestes a ganhar um milhão de reais?! Seria esse fato tão relevante a ponto de merecer a manifestação pública em nome da Prefeitura e da Câmara Municipal? Façam-me o favor, isso é absolutamente inadmissível. Isso nos envergonha. Quais são os significados da palavra honra, orgulho, para os senhores? Quais são seus valores? O que ensinam para os seus filhos? Já não bastava a colonização global que submete todo um povo, que, alienado, diante da tevê, anestesiado, ainda, paga pelo seu voto, para que alguém - sem ter praticado qualquer ato de heroísmo cidadão, sem possuir um diferencial de talento pessoal ou honradez - ganhe um milhão de reais custeados pelos nossos míseros centavos, por intermediação de uma empresa de telefonia, sócia dessa empreitada? Os senhores sabem mesmo quanto um trabalhador ganha aqui por 170 horas de trabalho mensal? Os senhores já observaram à saída do turno noturno de nossas faculdades, na quantidade de jovens, que, depois de um expediente de trabalho exaustivo, ainda buscam forças, alimentam esperanças de melhorarem suas vidas para tornarem-se orgulhos dos seus pais, de suas famílias, mesmo ganhando tão pouco, mesmo utilizando nosso precário sistema de transporte? Já não bastou o mau exemplo do final do ano, com a exposição acintosa de rostos policromados de alguns vereadores e deputados nos outdoors da cidade, nos desejando feliz natal? Com o dinheiro de quem, agora, essas faixas chegam ás ruas? Mas, ainda: sob a decisão de quem, manifesta-se tanto ufanismo? A troco de quê? Onde estão os assessores, meu Deus?! Um ser de bom senso que impedisse esse desvario? Não tem qualquer justificativa, ou explicação, uma cidade chegar a esse ponto de alienação. Este ato demonstra que Campo Grande prestes a se tornar uma metrópole, com seus quase 800 mil habitantes, desvela-se no seu mais reles provincianismo imposto por seus políticos!
Em nosso nome não, por favor! Nós (alguns de nós) não nos orgulhamos da “moça-do-big-brother”, não por isso. Nós não, não podemos fazer isso. E os senhores que fazem parte da elite política não têm o direito de fazê-lo em nome de toda uma população. Não, enquanto em nossos semáforos tantos jovens fazem malabarismos para ganharem um trocado. Não, enquanto nossos postos de saúde estiverem lotados, dispensando jovens como a “moça-do-big-brothe” (algumas já são até mães!) porque não têm atendimento suficiente. Não podemos; enquanto existirem ainda muitas crianças fora das creches, e com esse direito constitucional não atendido, verem escoar suas infâncias e suas vidas. Não, senhores políticos, alguns de nós não podemos comemorar com vocês, essa absurda manifestação pública. Podemos, sim, questionar, exigir que sejam prestadas contas à população. Exigir, sim, que retirem o quanto antes essa inadmissível comemoração em nome de toda uma cidade e que agride nossa cara. Eu quero! Quero saber quem teve a idéia, quem autorizou e quem pagou? Quero prestação de contas, sim, senhores.
Quem sabe, reclamar à justiça, à diocese, ao poder executivo, ao papa. Por enquanto, eu e muita gente estamos é morrendo de vergonha, porque uma cidade como Campo Grande não pode mais ser tão pequena de valores. E, não se iluda, mocinha, com o agrado dos nossos políticos: você (ainda) não é (e não pode ser) nosso orgulho! Vá, primeiro, trabalhar, vá estudar, vá contribuir com sua gente, como tantas moças como você, apesar de todos os obstáculos, anonimamente, o fazem.
Ai de ti Campo Grande, continuas sem rumo e sem dono, conspurcada como nunca por quem recebeu a confiança do teu povo, para representar-lhes, e que, ainda, não se deu conta da imensa responsabilidade que os nossos votos lhes outorgou. Agora, minha última esperança é que, a provável passeata em carro aberto, em homenagem a “heroína”, não se dê pelo valoroso e honrado Corpo de Bombeiros e sob as sirenes de nossa Polícia Militar. Aí sim, seria o máximo do arbítrio, do abuso do poder público e da improbidade administrativa. E teríamos, todos, que voltar à escola, para, urgentemente, aprenderemos os novos significados das palavras, e, rever tudo de novo que temos a respeito de valores!

* Educadora, Doutora e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC de São Paulo