O
odioso cancelamento nosso de cada dia
O
ódio tomou conta do nosso cotidiano. Em nosso ideário coletivo, pensávamo-nos um
povo hospitaleiro, solidário, agregador, acolhedor ... Esquecidos, obviamente, de
que já matamos crianças na fronteira paraguaia; fuzilamos famílias inteiras de
índios e de negros, perseguimos pobres... Despedaçamos e salgamos Tiradentes.
As
(nem tão) novas mídias - assustadoramente apócrifas e aonde qualquer um é seu
próprio editor - apresenta-nos um mundo que antes não víamos, tão
explicitamente. Um ódio que vem, virulentamente, jactar-se em nossa cara, a
todo momento. Precisamos reconhecer nossa pobreza mental, emocional e moral e
enfrentarmos a normose que nos vem afetando, nos formatando e transformando-nos
em outros seres. Reconhecer e aceitar que o brasileiro não é e nunca foi bonzinho
e hospitaleiro, e, sim, um povo preconceituoso, hedonista e sentencioso,
torna-se urgente. Escrevo isso em dias pré-natalinos, mas, também, em que se
“comemoram” as intercorrências de saúde de outro ser humano, compatriota e presidente-da-república
do nosso país. De pronto, alinhados à boçalidade expressa em cada cantinho das
redes virtuais, os intensões e as mãos do “mercado” - não tão invisíveis assim –
evidenciam, escrachadamente, o contentamento dos 1% da elite (?) brasileira e o
fervor com que esses “bons” brasileiros aguardam por um desfecho propício aos
seus interesses. Não, não somos, unicamente, um povo carente de instrução e
educação. Parte de nós alimenta a ignorância, a alienação e a manipulação que
nos conduz, certeiramente, para tempos sempre piores.
Da
oratória de clérigos não é difícil ouvirmos – mesmo nesse momento do advento -
homilias contaminadas a entrelaçadas aos cânticos, orações e bênçãos. Dos
púlpitos - de todas as crenças – blasfêmias são proferidas; pessoas que ainda
buscam na fé uma réstia de esperança são vilipendiadas em uma espécie viscosa de
argamassa profana.
No
ambiente das relações familiares, nos grupos de amigos, companheiros de
trabalho, lastreia-se um crescente e criminoso fenômeno que encontrou sua
significância contra o mais próximo dos mais próximos sob o arbítrio e a forma do
“cancelamento”, ferindo pessoas, famílias inteiras e matando, fria e
repentinamente, “antes”- queridos em vida. Esse outro, o “cancelado” foi e é o
pai, a mãe, o irmão, o primo, a tia, o sogro, o amigo... Esse outro, que,
antes, pelo menos, vivia na aparência (e ilusão) da amizade, do respeito, da
consideração, agora, passa a ser considerado um pária, abortado de convivências,
antes, “pacificadas”. Talvez tudo seja mesmo o que se apresente ser. Talvez as
ferramentas midiáticas do novo tempo atuem em sua competência de mostrar quem realmente
somos. O lodo que emerge hodiernamente traz, em seus detritos, a verdade
dissimulada pelos enunciadores de narrativas históricas e editadas. O que se
constata é que ninguém mais suporta ninguém que se oponha a cor do seu vestido,
sua opção religiosa, seu viés político; sua opinião.
Livrar-se
de um semelhante, de um “seu” semelhante, pelo “cancelamento” é o mesmo que o “jogarmos
da ponte”, com as câmeras desligadas, sem sequer nos darmos conta dos possíveis
danos, ou, mesmo do seu afogamento. Mortes em vida estão acontecendo sem
funerais, homenagens, lágrimas nem velas. As mídias virtuais – ainda que
território sem dono e sem lei – podem ser instrumentos de reverberação do
espírito de época que vivemos, externando, com mais veemência, simplesmente, esse
mundo horroroso, preconceituoso, nefasto, odioso que, das profundezas humanas, consome
o nosso - antes, ilusório resguardado - mundo interior.
Campo Grande, MS,
13.12.24
Maria Angela
Mirault
Pofessora Doutora
em Comunicação e Semiótica pela PUC de
SP
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