sábado, 19 de novembro de 2011

A PATÉTICA E INSISTENTE VOLTA DOS MORTOS-VIVOS

Chega a nos parecer patética a ressuscitação do debate de um assunto morto, cremado, cujas cinzas já se espraiaram ao vento. Falo da obrigatoriedade do diploma de bacharel em comunicação social, na habilitação de jornalismo, para o exercício da profissão. Já que o debate retorna a nos assombrar, vamos lá. O Decreto-lei 972/69 que regulamenta a profissão já havia sido revogado, por direito e de fato, pela Constituição Federal, em 1988, ao determinar em seu artigo 5º e 220 “ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de COMUNICAÇÃO, independente de censura ou licença”. Revogado, também, fora pelo Decreto-lei 9.610/98 – Lei do Direito do Autor - que qualificou o trabalho jornalístico, de qualquer natureza, como de caráter intelectual, retirando o jornalista da condição de mero prestador de serviços no campo da Comunicação (DL 972/69) para colocá-lo no nível de autor de obra cultural. E, finalmente, foi morto, cremado e sepultado pela decisão do Supremo Tribunal Federal, em 17/06/2009, sob as seguintes (parte) alegações dos Ministros: “Danos a terceiros não são inerentes à profissão de jornalista e não podem ser evitados com um diploma...”; “... foi criado (DL 972/69) no regime militar para afastar, do jornalismo, intelectuais contrários ao regime”; “... a exigência de diploma é resquício do regime de exceção”; “... preservar a comunicação de ideias é fundamental para uma sociedade democrática”; “... restrições, ainda que por meios indiretos, como a obrigatoriedade do diploma, devem ser combatidos”.
A tentativa nazifascista de controlar os processos de comunicação entre o Estado e a sociedade sempre foi um almejo daqueles que lutam única e exclusivamente por suas causas. No Brasil, é icônica a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP, em 27/12/39, pelo Estado Novo, cujo objetivo explícito era o de controlar os meios de comunicação, bem como a propagação ufanista e ideológica do governo Vargas, sob a falsa concepção de que caberia ao Estado, em seu papel de organizador da sociedade, controlar e vigiar a informação.
Durante a ditadura militar, o governo Costa e Silva, além do Ato Institucional no. 5 (AI-5), criou, também, a Assessoria Especial de Relações Públicas – AERP, cujo objetivo era o de centralizar os órgãos governamentais de propaganda, com o intuito de fornecer as “verdades” do governo e conquistar o apreço da opinião pública brasileira. Propagandeando o “milagre econômico”, sob a convocação de um patriotismo exacerbado, obteve pleno êxito durante o governo Médici.
A regulamentação profissional imposta pelo DL 972/69 e a consequente criação dos bacharelados em Comunicação Social, notadamente, no que diz respeito às habilitações em jornalismo, surgiu e se disseminou sob esse viés nazifascista e esse respaldo filosófico-ideológico, que, na prática, busca sustentar a “verdade” deontológica de que seja preciso, necessário, primordial à espécie humana, a existência de um tradutor da realidade, desde que, devidamente regulamentado, sindicalizado e diplomado. Como se fosse possível credenciar-se alguém a tornar-se interlocutor entre o acontecimento e a sociedade leiga. Isso não é possível porque é impossível a isenção na narração do fato vivenciado. Toda expressão é a manifestação de um pensamento a respeito de um evento reelaborado, visto, sermos seres semióticos que detém em seus repertórios codificados do mundo, suas subjetividades e essas intersubjetividades invadem as interpretações e narrativas sobre a realidade. Isso joga por terra qualquer presunção de neutralidade do observador frente ao objeto observado, e, consequentemente, qualquer possibilidade de que, a isenção da notícia pelo viés do jornalista diplomado, se concretize.
Quando se argumenta a favor da ressuscitação da obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão de jornalista e, dialeticamente, se compara essa atividade com outras profissões como a medicina, a advocacia, a arquitetura e a engenharia, deixa-se de dar relevância a uma evidência crucial: enquanto estas - se desregulamentadas - podem auferir danos a terceiros, à outra só causa danos aos que a exercem e pleiteiam uma descabida reserva de mercado. Não é possível que se creia que um diplomado “clínico-geral”, só pelo fato de ter passado (às vezes, muito mal - haja vista os “Biais”) pela faculdade, seja mais competente do que alguém que traduza, com conhecimento de causa, as “verdades” da sua área de especialidade.
Ao se radicalizar em uma questão sabiamente morta, cremada, sepultada como esta, em plena segunda década do século XXI, mantendo-se a opção feita na década de 70, do século passado, em detrimento à liberdade de expressão e manifestação do pensamento e em favor do tecnicismo, ocultando o caráter ideológico-político pelo qual foi criado, chega a ser patético, inconsistente e, antes de tudo, um anacronismo retórico. O mundo gira, velozmente; as mídias, cada vez mais mutantes, convergem ao encontro de todos e cada um de nós, indistintamente; captura os fatos da realidade, em conformidade com as miríades de intersubjetividades, deglutem-na e devolvem-na em imagens e palavras, inundando blogs, sites, redes de relacionamentos, jornais e canais de televisão. Assim, a volta da obrigatoriedade do diploma universitário para o exercício da função tecnicista-funcionalista do jornalismo, nada mais traduz do que um saudosista ranço autoritário da ditadura a serviço do maior poder de restrição e controle sobre a liberdade de imprensa, nos dias atuais. Que, então, os mortos-vivos se mantenham como estão; sepultados.

Maria Angela Coelho Mirault – Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC de São Paulo
mariaangela.mirault@gmail.com

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