terça-feira, 24 de abril de 2018

Abaixo a tarefa de casa de uma escola caduca



            O traço é firme.  A vontade também. Ela quer escrever letrinhas em bastão. Mas, ela só tem quatro anos.
            No magistério do ensino fundamental, nas boas escolas públicas da periferia do Rio de Janeiro, alunos meus repetiam 5, 6 vezes o prato oferecido na merenda: peixe, dobradinha, galinha com arroz, salsicha com macarrão e ovo cozido, sopa de feijão. Para eles, essa merenda significava o único alimento durante todo o dia. O primeiro ano era aos 7 anos, o segundo, aos 8, o terceiro, aos 9. Àquela época, as escolas públicas eram qualitativamente melhores do que as particulares. Todos os seus professores eram concursados desde o Curso Normal (2 mil vagas, para 12/13 mil candidatos). Para esses, conhecendo a realidade de estrema pobreza, indicava três linhas de uma cópia de qualquer papel que tivessem em casa, ou achado na rua (jornal, revista, papel do embrulho), como tarefa de casa. Nunca fui de exigir absurdos que lhes transtornariam suas já tão difíceis vidas.
            Recentemente, o ensino fundamental obrigatório passou para nove anos; tem início aos quatro. Anteciparam o ingresso obrigatório à escola. Com quatro anos, nossas crianças são obrigadas a se matricularem no ensino fundamental, quase bebês. E, o que fez a escola? Nada! Não preparou-se para essa demanda. Adiantou o currículo; colocaram-nas enfileiradas em cadeira, para prestarem atenção à aula medieval que uma recém pedagoga lhes ministrará: A,B,C; 1, 2, 3...no mais absoluto silêncio.
            Quando vejo esse ser, cujo destino está traçado para além das estrelas, desenhando, com suas gordas mãozinhas, letras (que o computador já faz), trazidas como tarefa de casa, invadindo seu precioso tempo de ser inteira, brincar, viver, imagino que cada traço que lhe foi proposto executar está lhe roubando tempo de sua vida recém-iniciada. Imagino que essas frações de segundos consumidas pela ampulheta do tempo, inexoravelmente, nunca mais lhe serão restituídas. E, dói.
            A escola envelheceu arrogantemente; é uma senhora caduca, emburrecida e cruel. Teima em manter suas práticas anacrônicas e supérfluas. Tratam sua clientela (preferencialmente, os pais) sem qualquer vontade de se renovar. Novas e velhas doenças (TDH; TBP, depressão, anorexia, pânico, medo, terror noturno), vão surgindo, silenciosamente.  A criança apenada.
            Na verdade, a escola se perdeu, moribunda, NÂO soube (não sabe; não pode) aproveitar esse primeiro e segundo anos obrigatórios oferecidos para os pequenos de quatro, cinco anos.  Essas crianças não precisam de letramento. Precisam da leitura de mundo. Precisam do mergulho em seu rico e incomparável ecossistema semiótico, expressá-lo em suas falas; seus desenhos, suas bugigangas de sucata, seus leguinhos, seus super heróis, seus brinquedos e brincadeiras, e conversas com os seus pais, irmãos, vizinhos; professores, coleguinhas; correlacionar filmes, desenhos com a própria vida, entender seu papel em seu meio familiar, depois na sua família ampliada, enfim, tomar conta da sua vida, na qual a escola é e sempre será, apenas, complementar.
            Tarefas de casa são recursos para agradar aos pais do conceito equivocado, ultrapassado, e, que, por sua vez, precisam ser orientados. Não cabe mais no mundo do tablete, da comunicação online, do Google, documentários maravilhosos. É preciso mais do que nunca compreender que o tempo da criança é agora; cada minuto roubado é estelionato, é furto de um tempo precioso irrecuperável.
            Contenha-se escola! Repactualize suas velhas e ultrapassadas didáticas. Desarrume esse quadrado medieval. Pergunte o que seu aluno fez de legal, sente no chão, pedagoga, troque ideias com os coleguinhas, converse sobre sua família, como foi seu dia, o que aconteceu de bom, também com você. O mundo dessas crianças será incomparavelmente diferente do que o Enem, você, escola - por incompetêcia, preguiça, e lucratividade - imaginam. Ninguém sabe!
             Cada vez que minha menina de quatro anos, busca sua lapiseira, abre seu livro e começa a tracejar o “A”, penso, penalizada, no precioso escoar da ampulheta a lhe roubar a preciosidade do seu tempo. Não precisamos só de Educação, mas, de uma Educação que valha a pena viver e transformar.

Maria Angela Coelho Mirault
Professora, Doutora e Mestre em Comunicação e Semiótica/ Signo e ignificação das Mídias
Campo Grande, 25 de abril de 2018
Publicado, dia 27.04.2018, jornal Correio do Estado. Campo Grande, MS.



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