sexta-feira, 15 de abril de 2022

Lavemos nossos pés

 


Lavemos nossos pés

Durante o pregão e confiante de seu lugar de fala, o celebrante dirigiu-se aos fieis e disse: “todos vocês” são pecadores; eu também o sou! Será? Teremos, nós - pequenos e vulneráveis mortais - que pagar por aqueles pecados que assombraram nossa infância, do caderninho-de-deus, na porta-do-céu; aquela continha enooooorme cobrada no “juízo-final”?! Afinal, quem é o pecador? Aquele emaranhado com as agruras da própria vida, que metendo os pés pelas mãos, sai do eixo da virtude e segue na vida como pode, como sabe, como viu, como aprendeu? Aquele que sabe que peca e, mesmo assim, se pauta no pecado? Será aquele que sabe que erra e finge que não sabe que erra e vaaaai? Rebanho de pecadores, estaremos destinados ao descarte e ao caldeirão? Será que essa roda do Sansara nunca terá fim?

Será que aquele homem que dividiu a História e o calendário, que lavou os pés dos seus discípulos - signo e mensagem da compreensão e do perdão - pensaria isso de nós? Não, certamente que não: estaria ao nosso lado, nos acolhendo, consolando e clamando aos céus, de novo, por nós: “Pai, perdoai porque eles não sabem o que fazem”.

A regra de ouro do percurso de qualquer Mensagem é a premissa categórica de que jamais teremos as condições ideais para a traduzi-la, tal como se originou; a comunicação é mera possibilidade. Ainda entendemos tudo errado (origem de todos os conflitos). Tudo que nos soa aos ouvidos, assim como a tentativa que empreendemos, não passa de um esforço peculiar e individual de compreensão, de acordo com nosso potencial de competência.  Mas, a pureza mesma entre Emissão-Recepção nunca se dará. No trajeto, sofrerá transformações, impregnada que será de crenças, valores e filtros culturais. Por isso somos tantas vozes dissonantes sobre um mesmo tema. Sempre.

As religiões judaico-cristãs ainda nos fazem rememorar a “morte” do judeu na cruz; não a celebração e vitória da vida do judeu sobrevivente; signo e mensagem de sua peregrinação entre nós.  Talvez, nunca entendamos aquele jovem homem de 33 anos que se conduziu ao calvário; que, antes, expulsara vendilhões. Àquele que se apresentou e se submeteu ao Sinédrio, sem temor; que não disse nem negou que era, ou não, Filho do Homem; que vinha trazer a Boa-Nova da Vida Eterna. Do alto de sua grandeza, preferiu optar por comprovar sua Mensagem de Ouro, vivenciando e deixando-se levar à humilhação, ao reproche; às admoestações criminosas. Quando nos legou do alto das Oliveiras o seu pedido de perdão, sabia bem que estava lidando com o povo de Barrabás. Sem dúvida, a mídia exibirá inúmeras paródias da tragédia. Encenações se propagarão pelas cidades; o cenário hediondo do calvário será remexido e repetido incessantemente. Mas, a Mensagem de Ouro com o qual comprovara todo seu propósito de vinda e vida entre nós, não nos será, de novo, compreendida, nem exaltada. Sequer, será ouvida. Nessas “comemorações”, Barrabás ainda é o nosso herói.

Nestes dias significativos e simbólicos, na intimidade de nossas vidas, lavemos, pelo menos, as poeiras dos nossos pés. Não lamentemos nem celebremos a morte. Reflitamos e acordemos para a Mensagem da Vida Plena, tão mal decodificada naquele e nesse tempo. Não, não somos pecadores, senhores do templo; temos, sim, um longo caminho a caminhar, com honra e respeito, mesmo sem entender por que. Mas, o inferno não será nosso pódio.

 

Maria Angela Coelho Mirault

Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC de SP

Campo Grande, MS, 13 de abril de 2022

 

 

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