terça-feira, 5 de abril de 2022

Tratado de paz

 

Niki apanhou na pré-escola. Na saída, um pranto incontrolável recortava suas palavras, e sua tentativa de contar o que acontecera e expressar a sua dor! Ele mal completara quatro anos e experienciou o amargor do seu primeiro ataque de um semelhante e habitante de um – presumivelmente - ecossistema favorável a ele e a convivência com seus iguais. Naquela manhã, Niki havia se deparado com a agressividade do mundo externo ao seu - naturalmente antropocêntrico, ameno, colorido, estético, ético e acolhedor – e, conheceu um dos seus porquês. O episódio aparentemente fortuito (há coisas tenebrosamente – meu Deus! – piores, neste mundo e perpetrado contra a infância!) fez com que Niki adentrasse em um novo mundo: lá fora, “a gente apanha”; lá fora, “dói”!

Em grande escala, somos Nikis. Mesmo que, munidos pelas experiências adquiridas; pelos inúmeros processos do bater e do apanhar, ainda choramos e morremos, perdidos na lógica do porquês.

O mundo de Niki é o nosso mundo contaminado e pulverizado por espécimes agressoras.  Parece mesmo que essa mutação esteja ganhando pelo grito e opressão; adaptados, tenham aprendido a reverberar seu domínio e seus demônios. O que sobressai é uma insanidade vigente insuportável, ofensiva, repugnante, mas, trivial, guerreando e fazendo suas ocupações em todos os territórios já em escombros; combalidos e tomados. Há uma carência retumbante de comprometimento com o Outro, com o Igual e o - mais hediondo - com o Diferente, em todos os espaços. Aliás ... nem precisamos do lá fora, já que nem damos conta dos bélicos conflitos do fogo-amigo, dentro dos nossos bunkers. De repente, nos vemos (ou sabemos) brigando na rua, nas casas, na família (ah! as famílias!). As pequenas guerrilhas  - entre seres, antes, queridos – eliminando qualquer possibilidade de entendimento e convívio, formando o exército de uma subespécie de almas migrantes em busca de um lugar de sobrevivência; uma nesga de espaço entre as fronteiras do antes e do depois.  Há evidência de muita revolta, muita raiva pronta a explodir em nossos – aparente e enganosamente pacíficos - pedaços existenciais. Todos os dias - kamikazes – saímos de casa, munidos dos nossos próprios coquetéis molotovs e deixamos nossas bombas reativas, colocando, all time, nosso arsenal de guerra em estado de alerta máximo. Em estado de guerra permanente, saímos dos abrigos nucleares, em que se transformaram nossas protegidas casas, apontamos nossos poderosos mísseis para qualquer um: o gatilho pode ser uma mera buzinada, um coco de cachorro na calçada do vizinho e nossos “tanques desgovernados” passam por cima de nossos próprios carros.

Sim, somos nós quem alimentamos, diuturnamente, esse estado de guerra; oferecendo ao mundo nossa alta densidade e psicosfera bélica, hipnotizados (imbecilizados?) pela força das redes,e, ainda, pela desinformação emanada dos canais abertos e restritos das tevês.

E, aí, camarada, de dentro dessa vida que levamos, neste lugar em que vivemos, apartados e conflagrados, quem somos nós, para palpitar e tomarmos partido em guerras e conflitos dos outros?

Desliguemos, urgente, e, primeiramente, nossos “tubos” de (des) informação e cuidemos um pouco mais e verdadeiramente das nossas querelas pessoais e cotidianas. Porque o tratado de paz, que vale, verdadeiramente, não depende do Capital Internacional e armamentista; da OTAN, da UE, de Beiden, de Putin e Zelensky. A nossa guerra desenrola-se virulenta e nefastamente dentro de cada um de nós e ao nosso redor. Nesse contexto, só nós temos o Poder de desligar o estado de alerta máximo; nossa fabricação doméstica de bombas e assinar Esse (nosso) Tratado de Paz.

Namastê!

Professora Maria Angela Coelho Mirault é Doutora e Mestre pela PUC de SP, em Comunicação e Semiótica: Signo e Significação das Mídias

Campo Grande, MS, 28.03.22

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