sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Carta aos Filhos que se divorciam dos pais

 



Recentemente, quase tod(e)s soubemos que, em algum lugar do mundo, uma mãe movera uma ação judicial com intuito de retirar dois filhos adultos (mais de 40 anos) de sua casa. Nesse mundo convulsionado em que vivemos, fatos que expõe a privacidade de uma família - onde, outrora, todas as mazelas aconteciam ocultamente - não mais fenecem em seu analógico ambiente de origem e reverberam incansável, infame e indefinidamente no ambiente digital, pelo (misterioso) mundo dos algoritmos.  Ao rolarmos os dedos em simples ato no celular, não é incomum surpreendermo-nos pela impactante captura dessas nesgas de realidade. Por esse mundo-novo, capturado por uma câmara qualquer, também pudemos testemunhar o abandono de um pai-cadeirante por um de seus filhos, na calçada da casa de outro irmão. Contudo, no mundo analógico das Varas Judiciais de Família, no campo dos Direitos Difusos do Cidadão, se configura a detecção de outro tipo de distorção nesse “comercial-familiar-de-margarina”, validado, extraoficialmente, por ditas e reconhecidas concepções e práticas de pessoas-e-famílias-de-bem, as quais, até cultivam e propagam alguma fé religiosa. A essa distorção é o que designo por “aborto-tardio” e “divórcio dos pais”.

Talvez, sejamos, aquela geração de pais que, sem bússola e inadvertidamente, vivemos – e, pagamos caro por isso - a juventude do século passado. Aqueles que intentaram uma educação moderninha e adocicada da figura materna da mãe-irmã e do pai-amigo na vida dos nossos filhos. Nós, mulheres aguerridas, acreditávamos na busca irrefreada do sucesso profissional e financeiro, conciliado com o sucesso no lar, mesmo que sob o arrasador regime da tríplice jornada de trabalho (quase que, reconhecidamente, escravo). Nossos filhos foram, sim, criados sob o escambo da troca do afeto por muambas compensatórias. Hoje, nossos mesmos filhos quarentões já foram “encaminhados” na vida. Porém, hoje, também, muitos deles não nos querem por perto dos seus feitos e dos seus êxitos. Alguns de nós ainda tentam sobreviver, contrabandeando pingos de afeto, na figura dos netos. Outros, jazem, surpresos, julgados, condenados, sentenciados, e, abandonados nas calçadas da vida.

O “divórcio” afetivo dos filhos em desfavor dos pais está por merecer um rigoroso e digno estudo antropológico-semiótico, de especialistas afins. Ególatras, alienados e ingratos, sequer se deram conta de que a vida que aqueles (maus) pais gestaram lhes ofertou algo inegociável: um lugar no mundo. Um lugar pelo qual, esses pais, por si mesmos, já seriam dignos e detentores de respeito; representantes que são de todos aqueles que lhes antecederam na fileira incontável da ancestralidade dos que vieram, antes, construir-lhes o trilho por onde, hoje, passam.

Bert Hellinger, o codificador da moderna Constelação Familiar sabiamente designa: “ao filho cabe ‘tomar’ aos seus pais. Isso é muito mais do que amar, respeitá-los e honrá-los. Significa, o reconhecimento dos seus lugares inalienáveis de pertencimento na hierarquia da vida. Não cabe ao filho-adulto-mal-educado (e mimadinho) decidir impunemente pelo abandono de todos que, por seus pais, lhes vieram antes, desonrando sua origem, sua cultura e seu sistema familiar, impedindo que o fluxo da vida chegue e se perpetue em seus descendentes. Ser filho adulto implica sobretudo em cumprimento de deveres e obrigações já inscrita no código da vida e já escritas nos códigos e leis judiciais vigentes.

A figura ímpar da mãe e do pai jamais deveria ser vilipendiada pelos ditos e não-ditos de uma filiação opressora que se decide pelo abandono e o divórcio, unilateral, inefavelmente oculta, silenciosa e implacável.  Sobretudo, porque as leis da vida clamam e exigem a restauração, a perpetuação e o cuidado na manutenção desse vínculo inquebrantável, e nada ocasional, entre pais e filhos; e filhos dos filhos e dos filhos dos filhos, ininterruptamente, ao longo do tempo, indefinidamente. Voltemos nossos olhos e sigamos os passos dos nominados e reconhecidos filhos de Abraão e toda ancestralidade bíblica daquele que veio ao mundo difundir a mínima possibilidade da instalação do amor entre  todos nós, filhos e pais ainda em escalada da perfeição.

 

Campo Grande, MS, 10 de novembro de 2023

Maria Angela Coelho Mirault

Professora Doutora em Semiótica pela PUC de São Paulo

Consteladora e terapeuta familiar



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