sábado, 14 de dezembro de 2024

O odioso cancelamento nosso de cada dia

O odioso cancelamento nosso de cada dia

O ódio tomou conta do nosso cotidiano. Em nosso ideário coletivo, pensávamo-nos um povo hospitaleiro, solidário, agregador, acolhedor ... Esquecidos, obviamente, de que já matamos crianças na fronteira paraguaia; fuzilamos famílias inteiras de índios e de negros, perseguimos pobres... Despedaçamos e salgamos Tiradentes.

As (nem tão) novas mídias - assustadoramente apócrifas e aonde qualquer um é seu próprio editor - apresenta-nos um mundo que antes não víamos, tão explicitamente. Um ódio que vem, virulentamente, jactar-se em nossa cara, a todo momento. Precisamos reconhecer nossa pobreza mental, emocional e moral e enfrentarmos a normose que nos vem afetando, nos formatando e transformando-nos em outros seres. Reconhecer e aceitar que o brasileiro não é e nunca foi bonzinho e hospitaleiro, e, sim, um povo preconceituoso, hedonista e sentencioso, torna-se urgente. Escrevo isso em dias pré-natalinos, mas, também, em que se “comemoram” as intercorrências de saúde de outro ser humano, compatriota e presidente-da-república do nosso país. De pronto, alinhados à boçalidade expressa em cada cantinho das redes virtuais, os intensões e as mãos do “mercado” - não tão invisíveis assim – evidenciam, escrachadamente, o contentamento dos 1% da elite (?) brasileira e o fervor com que esses “bons” brasileiros aguardam por um desfecho propício aos seus interesses. Não, não somos, unicamente, um povo carente de instrução e educação. Parte de nós alimenta a ignorância, a alienação e a manipulação que nos conduz, certeiramente, para tempos sempre piores.

Da oratória de clérigos não é difícil ouvirmos – mesmo nesse momento do advento - homilias contaminadas a entrelaçadas aos cânticos, orações e bênçãos. Dos púlpitos - de todas as crenças – blasfêmias são proferidas; pessoas que ainda buscam na fé uma réstia de esperança são vilipendiadas em uma espécie viscosa de argamassa profana.

No ambiente das relações familiares, nos grupos de amigos, companheiros de trabalho, lastreia-se um crescente e criminoso fenômeno que encontrou sua significância contra o mais próximo dos mais próximos sob o arbítrio e a forma do “cancelamento”, ferindo pessoas, famílias inteiras e matando, fria e repentinamente, “antes”- queridos em vida. Esse outro, o “cancelado” foi e é o pai, a mãe, o irmão, o primo, a tia, o sogro, o amigo... Esse outro, que, antes, pelo menos, vivia na aparência (e ilusão) da amizade, do respeito, da consideração, agora, passa a ser considerado um pária, abortado de convivências, antes, “pacificadas”. Talvez tudo seja mesmo o que se apresente ser. Talvez as ferramentas midiáticas do novo tempo atuem em sua competência de mostrar quem realmente somos. O lodo que emerge hodiernamente traz, em seus detritos, a verdade dissimulada pelos enunciadores de narrativas históricas e editadas. O que se constata é que ninguém mais suporta ninguém que se oponha a cor do seu vestido, sua opção religiosa, seu viés político; sua opinião.

Livrar-se de um semelhante, de um “seu” semelhante, pelo “cancelamento” é o mesmo que o “jogarmos da ponte”, com as câmeras desligadas, sem sequer nos darmos conta dos possíveis danos, ou, mesmo do seu afogamento. Mortes em vida estão acontecendo sem funerais, homenagens, lágrimas nem velas. As mídias virtuais – ainda que território sem dono e sem lei – podem ser instrumentos de reverberação do espírito de época que vivemos, externando, com mais veemência, simplesmente, esse mundo horroroso, preconceituoso, nefasto, odioso que, das profundezas humanas, consome o nosso - antes, ilusório resguardado - mundo interior.

Campo Grande, MS, 13.12.24

Maria Angela Mirault

Pofessora Doutora em Comunicação  e Semiótica pela PUC de SP

 

 

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

O mundo caótico das narrativas


 

O mundo caótico das narrativas

 

Desde quando, o mundo foi o mundo das realidades e da verdade, em si? Tudo que nos chegou, o foi pelo processo de histórias mal engendradas, mal registradas e mal contadas. Toda a História da Humanidade viajou no tempo por intermédio de narrativas, por intermédio de enunciadores que não a viveram. São elas que formaram o cerne de todas as entranhas culturais existentes no mundo. Toda nossa vida foi-nos traduzida pelos que nos precederam (lembranças são memórias atualizadas, nunca fieis aos acontecimentos). Tudo o que deles sabemos, também o foi. Tenho insistido na tese de que a verdade, enquanto categórico universal, não nos seja acessível.

Fatos são fenômenos irrecuperáveis na linha do espaço-tempo. Mesmo com o advento das novas mídias, “vê-se” o registro, mas, não se pode recuperar a “realidade”; a “verdade” tal como se deu. Isto, porque nossa capacidade de percepção do mundo é ínfima, parcial, individual: o que eu percebi; o que eu vi; o que eu inferi está absolutamente lincado a minha (in)capacidade de captar, deduzir; interpretar e enunciar o fato em si. O que vejo, creio, percebo está contido no campo de minha potencialidade de perceber, interpretar e enunciar. Vivemos, mesmo, mergulhados em um mundo caótico de narrativas. De enunciados e de enunciadores, a respeito da “verdade dos fatos” (inapreensíveis em si) vamos construindo narrativas possíveis dentro dos parâmetros que podemos ter. Nossas enunciações deixam nossas assinaturas, marcas e rastros de opinião; reescrevendo, diuturnamente, a história-contada, do nosso e único jeito de compreendê-la e transmiti-la.

Tudo se nos apresenta como meras traduções. Metabolizamos o que capturamos de fora, por intermédio da filtragem do que temos por dentro. E, nesse processo de captação e representação da realidade, a carregamos com pinceladas de uma cosmovisão personalíssima que constitui nossa lente de olhar o mundo. Tal como o observado vê o observador, o mundo traduzido, por recorrência de quem o captou, se apresenta particularíssimo diante de nós.

Depois, de Einstein e da física quântica legaram um, antecartesiano novo paradigma do encontro, no qual ambos (observador e observado) se auto modificam, todas as narrativas a respeito de tudo são possíveis. Com isso, somos os que observam e os observados. Influímos e somos influenciados; modificamos o que captamos como realidade e verdade em si e as enunciamos conforme a capacidade que temos de interpreta-las e as passarmos adiante.

Somando-se ao conceito anterior, com relação a captação do mundo, a Semiótica (ciência dos signos; estudo de como lidamos com as representações) determinou que a apreensão da “realidade” se dá por intermédio de traduções sígnicas.  O mundo que habitamos (e tudo que há nele) é único e individual. Vivemos a realidade que, potencialmente, podemos viver - “somos quem podemos ser” - por meio das significações que somos capazes de dar, seja, com relação aos acontecimentos (aos fatos), às pessoas, à realidade; à “verdade”; à vida em si.

Enunciadores-narradores de fatos e verdades - com nossos parcos recursos de captação, interpretação e compreensão - é o que somos. Tudo arrolado em um imenso caldeirão, no qual razão e emoção nos constituem enquanto humanos pensantes e sencientes. Somos, sim, complexidades (ainda ignorantes e narcísicas), as quais, atribuímos uma capacidade que não temos. Tudo é e não é; existe e não existe, dependendo do filtro que temos e usamos. É a esse mundo de “enunciações”; “paradigmas”, “concepções” e “narrativas” que estamos todos subjugados e afetados. Dotados da arrogante prerrogativa anacrônica de que somos capazes do que não temos condição de ser; ou seja, compreender o outro e o mundo que nos asfixia por si mesmo, tal como é; tal como somos; intérpretes do que nos chega – oriundo da esfera das significações - filtrado, de antemão, por nosso próprio lastro interpretativo. Reconhecer e conseguir vivenciar esse mundo de narrativas, talvez, seja a habilidade que precisamos reconhecer como de nossa natureza, para esse momento caótico de estar no mundo, que, de toda forma é só nosso, visto que, o real não existe. A concepção que temos a respeito de tudo sempre será pessoal e intransferível. Enfim, tudo o que podemos acessar se dará, unicamente, por intermédio de traduções e de narrativas nossas e dos demais. A torre de babel não seria, assim, apenas um mito, talvez seja uma explicação.

 

Maria Angela Coelho Mirault

publicado em Webartigos