quinta-feira, 1 de maio de 2014

Não, Neymar, nós não somos todos macacos

A campanha publicitária custeada graças ao astronômico potencial econômico de Neymar com adesão imediata nas redes sociais e de nefasta repercussão pela mídia não passa de mais um lamentável episódio que tomou de assalto nossa já triste história cotidiana brasileira. Não, nem eu, nenhum compatriota, nem ninguém da raça humana pode, agora, aderira essa causa equivocada e declarar-se macaco, como forma de se contrapor ao racismo espanhol que a campanha intentou reverter. Daniel Alves, o cidadão brasileiro que comeu a banana antes de bater uma falta na lateral de campo, tomou um espaço absurdo na mídia globalizada; até nossa presidenta “twitou” a respeito, considerando que o jogador “deu uma resposta ousada e forte contra o racismo no esporte”, enquanto o próprio jogador declarara sua motivação: “rir de retardados”, demonstrando, sim, que sua atitude, embora, inusitada e irreverente, nada tinha de contestatória, levando na “esportiva” a atitude racista do torcedor espanhol. Mas, a campanha deflagrada por Neymar “dando um apoio ao colega” - que já tinha resolvido a questão - pegou mal, para quem tem, pelo menos, dois neurônios, para usar. Pois bem, o racismo é uma chaga da nossa espécie, nasce quase como um arquétipo humano - quiçá, em outras espécies - e se revela na mais tenra idade. Crianças são cruéis na constatação das diferenças; isso não precisa ser ensinado. O que precisa ser ensinado é que as diferenças, que nos distinguem e não nos diminuem, devem ser constatadas e ressaltadas; não nos desmerecem frente aos outros; que a riqueza dos indivíduos reside nessa desigualdade. Onde é que somos iguais? Em que circunstâncias, somos iguais? O preconceito contra as diferenças (pobreza/riqueza/ branco/preto/amarelo/cafuso/índio/senhor/escravo/patrão/empregado/culto/inculto...), muitas das vezes, emerge da própria pessoa que se diferencia pejorativamente dos demais necessariamente desiguais. O fato é que não podemos aceitar o apelo dessa campanha como resposta. A campanha “somos todos macacos” decodificada em sua “verdade” aceita o preconceito espanhol, sublinha o racismo em si, e, ao significa-lo e ampliá-lo, expande para toda a população brasileira, uma origem darwiniana, sem a devida discussão, antropológica e biológica, necessária. Não podemos aceita-la porque, por natureza intrínseca, somos únicos e diferentes. No Brasil, somos um povo, cujo diferencial do conceito preconceituoso europeu, é composto pela mistura-misturada-de-misturas de tipos de gente. Temos genes africanos, sim; temos genes europeus e nativos, sim, e é, justamente, isso que nos torna tão incrivelmente distintos. Nossas diferenças nos distinguem em nossas (positivas) peculiaridades. Somos identificados e considerados um povo amistoso, amoroso, alegre, descontraído, irreverente, e, até, feliz. Mas, também, “macunaimamente” falando, preguiçoso, indolente, insolente, aproveitador do laissez-faire, e, ultimamente (pela FIFA, principalmente), inidôneos, e, por nós, mesmos, corruptos. Valorizemos nossas diferenças, nossa ancestralidade, nossas lutas, derrotas e conquistas. Somos, sim, na grande maioria, um povo que se faz e refaz todos os dias, nas idas e vindas ao trabalho, nas filas dos postos de saúde, nas escolas sucateadas. Engolimos mentiras, alienados e anestesiados da crua realidade que ronda a todos nós, que vivemos muito longe dos palcos e dos luxos que a vida esportiva, na Europa, na Ásia, ou lá onde for, costuma brindar meninos distinguidos e assinalados por olheiros e pela sorte, e, que, ao se destacarem como diferentes, alcançam visibilidade econômica de milhares de euros e dólares, tornando-os expatriados voluntários para viverem outras realidades, outras vidas, em outros longínquos lugares. Por tudo isso, não nos venha, agora, Neymar, igualar a todos com o seu limitado potencial de escrutínio a respeito de tema tão abrangente e tão duramente encarado no dia-a-dia dos seus, sim, irmãos e compatriotas brasileiros. Maria Angela Coelho Mirault – professora, doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC de São Paulo http://mamirault.blogspot.com

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